O padre Edwin Román, da Igreja de São Miguel Arcanjo em Masaya, na Nicarágua, denuncia perseguição do governo de Ortega| Foto: Carlos Herrera/Washington Post

Havia algo naquela mulher que apareceu recentemente na igreja São Miguel, na movimentada cidade mercantil de Masaya, na Nicarágua. Ela era alta, tinha por volta de 40 anos e estava bem vestida, com uma calça e uma blusa. Talvez fosse funcionária de algum escritório, imaginou o padre Edwin Román.

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Ela se sentou no banco onde ele estava ouvindo confissões e se inclinou para falar com ele.

"Onde posso obter bombas?", sussurrou.

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Román diz ter percebido rapidamente o que estava acontecendo.

"Eu posso dizer quando as pessoas são infiltradas", contou o padre, um conhecido defensor do movimento pró-democracia da Nicarágua. Espiões do governo do ditador Daniel Ortega, ele disse, estavam tentando capturá-lo.

Ortega respondeu à pior agitação política da Nicarágua desde os anos 1980, reprimindo protestos e sufocando dissidentes. Como o conflito ainda está em ebulição, a Igreja Católica, um dos últimos locais de protesto do país, encontra-se sitiada.

Os partidários de Ortega tentam se infiltrar nas paróquias. Forças de segurança cercam igrejas durante a missa. Sacerdotes sofrem assédio e ameaças de morte. A polícia cerca a universidade jesuíta quando os estudantes ousam acenar bandeiras da Nicarágua e gritar palavras de ordem contra o governo.

Há ecos da década de 1980, quando o governo pró-marxista da Nicarágua colidiu com bispos conservadores em um impasse na Guerra Fria. Como naquela época, o partido sandinista de Ortega está no poder. Agora, porém, a disputa é sobre a democracia, em um momento de crescente populismo e autoritarismo.

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Ataque à liberdade religiosa

Ortega, de 73 anos, acusou os líderes da Igreja de estarem "comprometidos com os golpistas", como ele chama os jovens ativistas que organizaram manifestações em massa no ano passado.

O clero nega que esteja tentando minar Ortega, mas como a Nicarágua se tornou um dos países mais repressivos da América Latina, a igreja se tornou um refúgio para os dissidentes.

Ameaças contra os líderes da igreja se tornaram tão intensas que o Vaticano recentemente convocou o bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez, para Roma.

"Há um ataque à liberdade religiosa como nunca vimos na Nicarágua", disse Félix Maradiaga, cientista político formado em Harvard e ativista da oposição. "E está ocorrendo debaixo do nariz de todo o mundo".

Lugar de refúgio

Estátuas de São Miguel são adornadas com a bandeira da Nicarágua, que se tornou um símbolo de resistência ao governo de Ortega | Foto: Carlos Herrera/Washington Post| Foto: For The Washington Post
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Quando as balas começaram a voar em Masaya, Román estava em seu quarto, assistindo TV. Ele ouviu uma batida no portão do jardim.

"Um jovem apareceu perguntando: 'Padre, você tem luvas, álcool, gaze?'", lembrou o padre de 59 anos. "Eu olhei ao redor. As únicas luvas que eu tinha eram luvas de forno".

Era uma noite de primavera em 2018 (outono no Brasil). Masaya, a cerca de 22 quilômetros da capital, já foi uma fortaleza sandinista. Agora estava no coração de uma revolta nacional. O que começou como protestos contra uma reforma da previdência se transformou em manifestações contra o governo de 11 anos de Ortega e seu desmantelamento das instituições democráticas.

Román começou a fazer ligações. Logo a igreja São Miguel tornou-se uma clínica informal para manifestantes feridos.

"Para mim, era um serviço humanitário", disse o padre.

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Por todo o país, padres e bispos se viram nas linhas de frente da crise. Eles resgataram manifestantes que fugiram para as igrejas quando a polícia e os paramilitares fortemente armados começaram a atacá-los. Também aconselharam pais perturbados com as prisões de seus adolescentes.

Relação da igreja com o governo

Ortega tem uma história turbulenta com a igreja, amplamente influente neste país de maioria católica.

Na década de 1980, ele desafiou sua liderança, convidando padres de esquerda para seu gabinete e encorajando a criação de uma "igreja popular" pró-governo - o que rendeu a seu governo uma bronca pública do papa João Paulo II. Mais recentemente, ele tentou se reconciliar com a hierarquia católica, apoiando uma das mais rígidas leis antiaborto da América Latina.

Como a crise política da Nicarágua se intensificou no ano passado, Ortega pediu aos bispos para intermediar um diálogo nacional. Havia poucas outras instituições que poderiam fazê-lo: a maioria dos partidos de oposição tinha sido cooptada ou destituída de seu status legal.

Mas as negociações logo pararam - e a reação foi rápida.

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Ortega acusou, sem apresentar provas, que as igrejas estavam sendo usadas "para armazenar armas, armazenar bombas". Enquanto os paramilitares e a polícia desalojavam os manifestantes que ocupavam os campi das faculdades e os bairros, as igrejas se viram no meio do fogo cruzado. Sacerdotes e bispos tentaram dar aos manifestantes um santuário; multidões pró-governo os atacaram. Em um ponto, Báez foi esfaqueado no braço enquanto tentava defender os jovens em uma igreja.

Mais de 300 pessoas, a maioria delas manifestantes, foram mortas, segundo grupos de direitos humanos. O governo da Nicarágua afirma que os manifestantes fazem parte de uma tentativa de golpe financiada pelo governo dos EUA.

As autoridades nicaraguenses negaram que estejam perseguindo os padres, mas não responderam a um pedido de entrevista.

“Estão em cima de nós”

Um policial armado vigia a entrada do bairro de Monaya, em Masaya, um reduto de resistência durante os protestos contra o governo no ano passado. Foto: Carlos Herrera/Washington Post| Foto: For The Washington Post

Um ano após a repressão, as barricadas se foram, mas as ameaças de morte continuam. Román diz que ele é seguido por agentes de segurança à paisana. Ele foi detido pela polícia duas vezes, por várias horas de cada vez. Oficiais cercaram sua igreja quando ele celebrou a missa em memória dos mortos ou para comemorar a libertação de presos políticos. Após os cultos, os fiéis realizam protestos improvisados ​​na entrada da igreja, agitando a bandeira azul e branca do país - um símbolo da rebelião.

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Dentro de sua igreja tranquila e arejada, alguém colocou uma bandeira da Nicarágua ao lado de uma estátua de São Miguel. Fitas azuis e brancas pendem de uma figura do Cristo ressuscitado.

"É assim que as pessoas protestam agora", disse o padre. “Qualquer coisa a mais do que isso poderia colocá-los na cadeia”.

As forças de segurança geralmente se abstêm de entrar na propriedade da Igreja Católica. É por isso que uma mulher de 36 anos viajou para a catedral modernista de Manágua em uma recente tarde ensolarada. Ela se juntou a um punhado de manifestantes que estavam do lado de fora, acenando bandeiras da Nicarágua e cantando frases anti-Ortega.

"Este é o único lugar seguro em que podemos ir", disse a mulher, que forneceu apenas seu apelido, Chela.

Apesar disso, ela olhava ansiosamente para os caminhões das forças especiais da polícia bem próximos ao perímetro cercado. "Eles estão em cima de nós. Na nossa vizinhança, eles estão nos observando".

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Ameaça de morte

Em abril, a catedral perdeu sua voz mais poderosa quando o Papa Francisco requisitou a presença de Báez em Roma.

O bispo se tornou uma face improvável da oposição nicaraguense. Estudioso de 61 anos de idade, com profundas entradas no cabelo e um doutorado em teologia da Universidade Gregoriana do Vaticano, ele fazia sucesso entre os jovens.

Isso ocorreu, em parte, à sua defesa dos direitos humanos durante uma década em Manágua. Mas também ajudou o fato de que ele era ativo no Twitter.

Embora o Vaticano não tenha explicado porque chamou Báez a Roma, o bispo disse em entrevistas que ele havia sido alvo de uma conspiração de assassinato. Em maio, a conferência dos bispos da Nicarágua disse que o clero, e Báez em particular, foram submetidos a "descrédito e ameaças de morte".

Nos últimos meses, a igreja assumiu um papel menor. A conferência dos bispos não está mais organizando as negociações com o governo, embora o núncio papal, o arcebispo Waldemar Sommertag, esteja participando.

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Maradiaga disse que alguns bispos estavam desconfortáveis ​​com a igreja assumindo um papel político proeminente. E diferentemente dos anos 80, quando o presidente Ronald Reagan e o papa João Paulo II apoiaram os bispos da Nicarágua em meio a uma insurgência financiada pelos EUA, o atual conflito recebeu pouca atenção no exterior.

"Os padres que se opõem ao regime não têm o forte apoio internacional que existia antes", disse Maradiaga, que dirige o Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas, um dos vários grupos da sociedade civil que foram proibidos pelo governo.

O isolamento é evidente na cidade de Esteli, no norte do país, onde o bispo Juan Abelardo Mata, de 73 anos, chefe da Conferência Episcopal da Nicarágua, faz uma incursão na igreja vigiada por cinco seguranças desarmados. O velho defensor dos direitos humanos tem sido um crítico proeminente dos sandinistas.

Mata e sete de seus padres arquidiocesanos receberam ameaças de morte, disse ele. Pelo menos quatro padres nicaraguenses fugiram do país.

Um ano atrás, quando Mata estava em uma viagem a Masaya, os partidários dos Sandinistas atiraram em seu carro e bateram em seu motorista. Desde então, ele evitou visitar paróquias nos dias de padroeiros ou confirmações.

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"Eu não quero derramamento de sangue na minha conta", acrescentou. "As pessoas aqui estão prontas para dar suas vidas por mim".

Quando deixa a cidade, ele usa um disfarce.

Sob o copo de sua mesa de jantar, Mata mantém uma foto de Óscar Romero, o arcebispo de San Salvador que foi morto a tiros em 1980 enquanto celebrava a missa - no ano passado, Romero foi canonizado.

Mata disse que a igreja da Nicarágua não será intimidada, mesmo se um padre for morto.

"A igreja não morre", disse ele. "A igreja tem visto os caixões de seus perseguidores passarem”.

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