Neste exato instante, milhões de jovens estão conectados à internet. Centenas, talvez milhares deles, acessando sites relacionados a temas como violência, xenofobia, racismo, pornografia extrema e fundamentalismo. Dentre eles, alguns estão visitando endereços de propaganda do Estado Islâmico (EI), conteúdos digitais como a revista Dabiq – publicação mensal oficial dos jihadistas repleta de notícias sobre as ações humanitárias do autointitulado “Califado” e de reportagens sobre como a guerra contra seus inimigos está sendo vencida. Repleta, também, de chamados a uma vida mais santa, romântica e plena de sentido.
Há diferentes fundamentalismos em uma mesma religião
Estado Islâmico ocupa metade do território sírio. Veja mapa
A tolerância que nasce na mesquita
Uma incrível fórmula, a mais improvável em um mundo razoável, para a atração de jovens. Uma fórmula, infelizmente, bem-sucedida em alguns casos, em especial no seio das comunidades muçulmanas empobrecidas que vivem na periferia das grandes cidades da Europa.
Informações de jornais como o The Guardian dão conta de que, somente nos últimos meses de 2015, cerca de setecentos jovens ingleses deixaram a Grã-Bretanha para se juntar ao EI. E há voluntários também oriundos de países como Alemanha, Espanha, Holanda, Estados Unidos, Brasil, Chile, Turquia e Líbano. Um grupo de 15 mil legionários que cresce graças à sociabilidade virtual e ao aliciamento feito por recrutadores capazes de chegar ao cerne das dúvidas e expectativas de um público insatisfeito com a própria realidade.
É desafiador descobrir o que move esses jovens a partir para um cenário de horror, a assumir um papel de horror, violência e, talvez, arrependimento. Mais ainda é produzir mecanismos que os protejam do aliciamento.
Que um movimento violentíssimo e terrorista, com uma ideologia antimoderna, misógina, racista, homofóbica e antissemita consiga mobilizar milhões tornando-se um dos maiores desafios securitários do mundo, diz muito sobre a crise da democracia liberal e de valores supostamente universais tais como igualdade, emancipação e direitos humanos?
Estudo
Um dos primeiros pesquisadores lusófonos a tratar do assunto foi Paulo Mendes Pinto, diretor da Licenciatura e do Mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, onde também dirige o Instituto Al-Muhaidib de Estudos Islâmicos. Em setembro de 2014, em entrevista para a Agência de Notícias de Portugal – Lusa , ele atribuiu o sucesso do chamado do EI entre certos grupos de jovens ao fracasso do modelo educacional europeu.
“É um fenômeno completamente inesperado para o ego da Europa ver muitos dos seus jovens a aderirem a este radicalismo islâmico”, observou, afirmando que tal adesão pode ser atribuída à escolha de um modelo que responda ao desalento gerado por problemas como o desemprego, falta de valores, corrupção e a luta cega por riqueza.
A opinião é compartilhada pelo pesquisador holandês Peter Demant, livre docente e professor do Departamento de História e do Instituto de Relações Internacionais da USP. “Que um movimento violentíssimo e terrorista, com uma ideologia antimoderna, misógina, racista, homofóbica e antissemita consiga mobilizar milhões tornando-se um dos maiores desafios securitários do mundo, diz muito sobre a crise da democracia liberal e de valores supostamente universais tais como igualdade, emancipação e direitos humanos.”
Neotribalismo
Tomando por base essas perspectivas, seria possível imaginar uma solução estrutural calcada em mudanças – difíceis –no próprio capitalismo e em uma atenção especial aos elementos “neotribais” percebidos pelo sociólogo francês Michel Maffesoli nas sociedades urbanas do século 21. É de se pensar se a valorização desse “neotribalismo” – das relações de pertencimento de vizinhança, de uma identidade compartilhada, fluida e pontual que se opõe às instituições clássicas –, poderia fazer frente à sedução exercida por uma “instituição total” (o EI) que promete consertar o mundo.
O papel da representação
É possível que a desconstrução do potencial de sedução do EI comece pela avaliação de um discurso que é cada vez mais comum, no Ocidente, a respeito do Islã: de que se trata de uma religião essencialmente violenta e, por conta disso, não confiável. Essa visão, observa Frank Usarski, livre docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), segue uma linha que os pesquisadores definem como “primordialista”, que coloca a violência ou a ausência dela como um traço inerente de dada religião.
Em oposição, uma segunda linha, “construtivista”, defende que traços de violência se encontram em virtualmente todas as religiões, inclusive nas mais valorizadas por sua atitude pacífica (caso do Budismo), e que o direcionamento da religião ao diálogo ou à belicosidade depende das retóricas assumidas por seus representantes – clérigos, líderes religiosos, praticantes destacados em suas comunidades.
“No caso do Islã, a questão crucial nesse sentido é: o conteúdo ambíguo do Corão é explorado por quem e com que espírito? A leitura tendenciosa serve aos interesses de fundamentalistas ou às ambições de forças islâmicas moderadas?”, questiona Usarski. A partir dessa identificação, seria possível superar as representações negativas e valorizar os interlocutores moderados.
Para Frank Usarski, também é necessário superar a sensação de inferioridade que tomou posse de parte do mundo islâmico após a derrota do Império Otomano e a partir do reconhecimento do atraso tecnológico do mundo islâmico em comparação com o Ocidente.
“O jovem muçulmano tem que aprender que há muitos motivos pelos quais se orgulhar do Islã, do fato de que seus 2,5 bilhões de aderentes em todos os continentes façam com que ele seja a segunda maior religião do mundo em termos estatísticos, dos seus eruditos, teólogos e filósofos, da sua arte, da espiritualidade cotidiana e disciplina dos seus fiéis, de uma ética que exige solidariedade com pobres e órfãos, de um sistema econômico que supera a frieza do capitalismo, motivado pelo lucro a qualquer custo.”
Estado Islâmico controla metade do território sírio e um terço do território iraquiano