Bruxelas se transformou na principal prova no caso contra a imigração, especialmente quando o processo envolve um grande número de muçulmanos. Donald Trump chamou a capital belga de “um inferninho”, enquanto Lubomir Zaoralek, ministro de Relações Internacionais da República Tcheca, citou recentemente a cidade para explicar porque tantos países do Leste Europeu resistem firmemente contra o plano da União Europeia de distribuir sírios e outros refugiados muçulmanos pelo continente por meio de um sistema de cotas.
“Todas as pessoas da República Tcheca e de outros países veem o que aconteceu em Molenbeek”, afirmou Zaoralek em uma conferência de segurança realizada recentemente na Eslováquia, referindo-se ao bairro de Bruxelas em que viviam muitos dos terroristas envolvidos nos ataques de 13 de novembro em Paris e 22 de março em Bruxelas.
Entretanto, ao observar de perto o que aconteceu em Molenbeek e em algumas outras regiões repletas de imigrantes em Bruxelas, é possível ver uma realidade muito mais complexa do que uma geração de jovens imigrantes muçulmanos mal integrados saindo de controle. Sob determinado ponto de vista, os fatos desmentem a visão de que o islamismo é uma religião que alimenta o terrorismo.
É verdade que todas as pessoas identificadas até o momento como participantes nos ataques a Paris e Bruxelas eram jovens muçulmanos de famílias imigrantes. Uma característica mais marcante que sua fé, porém, era o fato de todos terem origem no Norte da África, sobretudo em Marrocos. Nenhum deles fazia parte da grande comunidade de turcos que vive em Bruxelas, que compartilham a mesma religião, sofrem a mesma discriminação e outros dos muitos problemas frequentemente citados como a raiz do ímpeto jihadista contra o Ocidente.
Bruxelas começou a atrair imigrantes muçulmanos nos anos 1960, quando o governo belga convidou inúmeros trabalhadores vindos da Turquia e do Marrocos para se mudarem para a Bélgica e trabalhar nas fábricas e minas do país. Os dois países eram considerados amigáveis ao Ocidente e eram repletos de trabalhadores pobres dispostos a se mudarem para a Europa, ao contrário de muitos países em desenvolvimento que, na época, se rebelavam contra o colonialismo europeu e estavam mergulhados em conflito.
“Forte sentimento de vitimização”
“Você quer vir trabalhar na Bélgica? Nós belgas ficamos felizes em receber o apoio de sua força e inteligência”, afirmava uma mensagem do ministro do Trabalho na embaixada e nos consulados belgas em Marrocos em 1964. Um ano depois, notas similares foram enviadas à Turquia.
Juntos, belgas de origem marroquina e turca compõem hoje a vasta maioria da população muçulmana da capital, e ambos os grupos são herdeiros de uma forma de islamismo relativamente relaxada, livre do dogmatismo reacionário da Arábia Saudita e de alguns estados árabes. Portanto, como é que alguns marroquinos ficaram tão raivosos, alienados e, em alguns casos, radicalizados?
“Existe um problema no interior da comunidade de origem marroquina”, afirmou a subprefeita de Molenbeek, Françoise Schepmans, negando os argumentos de que o terrorismo seja um subproduto da fé religiosa.
Segundo ela, políticos de esquerda e líderes comunitários não perceberam o problema que estava surgindo em Molenbeek e ajudaram a ampliá-lo, tratando os jovens belgas de origem marroquina como vítimas sem chance de sucesso.
“Existe um forte sentimento de vitimização”, afirmou, destacando que os “turcos também enfrentaram a discriminação, mas existe força no interior de sua comunidade”.
Boa parte dessa força vem do Estado turco, que controla muitas das mesquitas frequentadas por belgas de origem turca e observam de perto elementos radicalizados no interior da comunidade por meio de uma rede bem estabelecida de líderes locais e imãs que são treinados na Turquia e enviados à Bélgica às custas do governo.
Em uma mesquita turca em Molenbeek comandada pela Diyanet, a agência de relações religiosas do governo turco, o imã, que fala apenas turco, se mostrou revoltado com os ataques de março em Bruxelas, afirmando que ele e seus fiéis nunca toleraram pontos de vista extremistas. Ele destacou que os frequentadores de sua mesquita sempre respeitaram e seguiram a lei.
Os fiéis de uma mesquita marroquina expulsaram com raiva os repórteres, acusando-os de incentivar a “islamofobia” e de estigmatizar seu bairro, tratando-o como um abrigo de jihadistas.
Ao contrário dos belgas de origem turca, a comunidade marroquina é muito mais dividida e resistente à autoridade, em parte porque muitos dos primeiros imigrantes vieram de Rif, uma região rebelde de língua berbere que frequentemente entrava em conflito com a monarquia marroquina.
“Quando começamos a imigrar para a Europa, o rei ficou contente por se livrar daquelas pessoas”, contou Bachir M’Rabet, um jovem trabalhador descendente de marroquinos em Molenbeek.
Segundo ele, outra fonte de revolta em sua comunidade é o fato de que muitos turcos falam mal o francês e o holandês, os dois principais idiomas da Bélgica, e se prendem à identidade turca, ao passo que a maioria dos marroquinos fala francês fluentemente e gostaria de ser aceita como plenamente belga. Isso, segundo ele, significa que muitos dos marroquinos sentem a discriminação de forma mais profunda e, ao menos no caso dos jovens marginalizados, isso pode fazer com que vejam qualquer sinal como uma prova de que o sistema todo está contra eles.
Philippe Moureaux, que foi subprefeito de Molenbeek por duas décadas, descreveu isso como “o paradoxo da integração”. A comunidade turca menos integrada resistiu à promessa da redenção por meio da guerra santa oferecida pelos radicais. Por outro lado, a comunidade marroquina que se sente muito mais integrada na Bruxelas de língua francesa viu parte de seus jovens ser aliciada por recrutadores como Khalid Zerkani, um criminoso marroquino que se transformou no homem forte do Estado Islâmico em Molenbeek.
“Os turcos sofrem muito menos de uma crise de identidade. Eles têm orgulho de ser turcos e são muito menos abertos ao extremismo”.
A desconfiança e a hostilidade em relação às autoridades, especialmente em relação à polícia, é tão profunda entre alguns dos imigrantes do Norte da África em Molenbeek que, quando a polícia se mobilizou na área recentemente para impedir que um grupo de manifestantes de extrema direita anti-imigração fizesse uma manifestação, jovens de origem marroquina começaram a xingar e atirar objetos na polícia.
Os imigrantes de origem turca e de outros países que vivem em Molenbeek geralmente são menos hostis com a polícia. Um comerciante turco que é dono de um armazém próximo à delegacia afirmou que não tinha medo dos policiais, mas dos jovens do Norte da África que o acusam de ser um mal muçulmano porque ele vende álcool. E destacou que esses jovens roubam, o que também é proibido.
Emir Kir, o subprefeito belga de origem turca de Saint-Josse-ten-Noode, um bairro com grande concentração de imigrantes em Bruxelas e em condições econômicas mais precárias que Molenbeek, afirmou que o único turco que ele conhecia que tentou ir para a Síria era um jovem que havia se apaixonado por uma garota marroquina. Ele conseguiu chegar até Istambul antes de ser mandado de volta. “Era um caso de amor, não um ato de extremismo”.
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