O déficit da balança comercial com a China pode ser um ponto importante para a administração de Donald Trump - e sua campanha à reeleição em 2020 -, mas cada vez fica mais claro o que realmente está em jogo neste conflito entre as duas maiores economias do mundo: uma disputa pelo domínio tecnológico das comunicações e da computação.
"A guerra comercial é mais sobre tecnologia do que sobre comércio", disse ao Washington Post Paul Triolo, especialista de política tecnológica global da consultoria Eurasia Group. "Nossa sensação é que o conflito vai se intensificar".
Em maio, após um período de trégua, Trump e o presidente chinês, Xi Jinping, voltaram a aumentar as tarifas de importação entre os países. Mas o que ocorreu alguns dias depois disso foi tão ou mais significativo. O governo dos EUA colocou a Huawei, na “lista da pena de morte” do Departamento de Comércio, proibindo empresas americanas de vender para a gigante chinesa das telecomunicações, um grande baque para os negócios da empresa, que depende de uma cadeia de fornecedores estrangeiros.
A administração Trump argumenta que, se os equipamentos da Huawei fizerem parte das redes globais 5G (sucessora da 4G), isso possa permitir que Pequim acesse os dados que passarão pelo hardware da empresa, deixando empresas americanas e cidadãos suscetíveis à espionagem. O governo dos EUA também está preocupado quanto à vulnerabilidade de sua infraestrutura de telecomunicações caso haja uma guerra de fato entre as duas potências. As queixas contra a Huawei, porém, começaram bem antes de Trump assumir a presidência e são motivo de preocupação entre republicanos e democratas.
O fundador da Huawei, Ren Zhengfei, insiste que sua empresa nunca permitiu a espionagem do governo chinês e não planeja permitir. Mas as autoridades dos EUA estão céticas quanto à resistência da empresa a uma diretiva do governo, já que existe uma lei na China que obriga as empresas a compartilharem informações com o governo em casos de segurança nacional.
O contra-ataque do governo chinês veio na sexta-feira passada, ao anunciar que estabeleceria uma lista de organizações estrangeiras "não confiáveis" que prejudicassem os interesses das empresas chinesas, forçando companhias de todo o mundo a decidir se fariam parceria com Pequim ou Washington.
Além disso, a China recentemente aumentou as ameaças de cortar o fornecimento de terras raras aos Estados Unidos - é assim que são chamados 17 elementos com nomes exóticos, como cério, ítrio e lantânio, usados na fabricação de mísseis avançados, smartphones e motores a jato. A China é o maior produtor global de terras raras.
Essa guerra fria tecnológica está reforçando a sensação de que as duas maiores economias do mundo estão destinadas a desfazer um sistema de dependência econômica mútua, construído nas últimas três décadas, e reformular fundamentalmente o mercado global e como as empresas fazem negócios em todo o mundo.
Ian Brammer, diretor do Eurasia, escreveu na revista Time que “para um país como os EUA cuja força econômica foi construída com base na globalização das cadeias de suprimento e na maximização de eficiências (o iPhone é projetado pela Apple na Califórnia, mas montado na China), essa é uma mudança radical”.
Disputa pela 5G
O pano de fundo desses últimos acontecimentos é uma luta sobre quem vai construir e liderar a inovação para a próxima geração de tecnologia de internet e telecomunicações, a rede 5G.
A nova tecnologia aumentará drasticamente a velocidade das comunicações sem fio, prometendo muito menos oscilações e maior confiabilidade. Enquanto as gerações anteriores (as já conhecidas 4G e 3G) se concentravam principalmente na conexão de pessoas, a 5G é particularmente adequada para conectar objetos, tornando possível, por exemplo, a circulação de carros autônomos.
Nenhum outro país dedicou mais investimentos para preparar o terreno para a 5G do que a China. O desenvolvimento e a implantação da nova rede se tornaram uma prioridade do governo, especialmente depois de a China ter ficado, em grande parte, dependente da tecnologia 3G estrangeira e tido um papel limitado na formulação dos padrões da rede 4G. Esses esforços, agora, vão garantir ao país um aumento considerável sobre as patentes essenciais da tecnologia.
Um estudo do Eurasia Group, publicado em novembro, avalia que a estratégia de Pequim é permitir que as operadoras, particularmente a estatal China Mobile, passem a operar com a 5G o quanto antes. Isso fará com que a China ganhe um tempo valioso testando e validando a tecnologia e os modelos de negócios para os aplicativos avançados que a 5G permitirá.
“Se a China capitalizar com sucesso essas tecnologias, suas empresas também terão a vantagem de exportar sistemas 5G para os países que estão na rota do Belt and Road Iniciative (BRI)”, um projeto de investimentos em infraestrutura do governo chinês que já contempla acordos com cerca de 125 países. O Brasil também é um potencial candidato, já que recentemente o vice-presidente Hamilton Mourão sinalizou que o país pode vir a aderir à Nova Rota da Seda, como o projeto chinês vem sendo chamado.
Um ecossistema 5G dividido entre China e Estados Unidos, como está se desenhando, forçaria os demais países a escolherem entre um ou outro - o que já vem acontecendo, como é o caso da Austrália e Israel que baniram equipamentos da Huawei no desenvolvimento de suas redes 5G. Apesar da pressão dos Estados Unidos sobre seus aliados, os custos mais baixos dos equipamentos chineses, com desempenho igual ou superior ao dos americanos, terão um grande peso na decisão dos países.
O estudo do Eurasia Group constata, porém, que qualquer vantagem inicial que a China possa ganhar provavelmente será compensada pelas diferenças consideráveis entre as maneiras como os dois mercados funcionam: o americano, impulsionado pela concorrência, permitirá inovação mais rápida de aplicativos em 5G, enquanto o chinês tem uma tendência de ser mais burocrático e hierárquico.
“É provável que haja muitos vencedores com a 5G, e as empresas dos EUA estarão entre as líderes na implantação de tecnologia 5G e nos aplicativos habilitados para 5G, apesar da vantagem inicial da China em implantar redes independentes”, conclui o relatório.