A invasão russa à Ucrânia e as medidas que os europeus tomaram para apoiá-la tornam a Europa, e em especial a União Europeia, a maior prejudicada pelo conflito. Em uma nova busca por uma soberania do bloco desde 2017, liderada principalmente pela França e pela Alemanha, os países do Velho Continente de fato precisaram reduzir a dependência de outros Estados, sobretudo da Rússia. No entanto, o movimento foi acelerado, em caráter de urgência, e os europeus se atropelaram. Quem ganha com isso são Estados Unidos e China.
Restabelecer a autossuficiência europeia é uma das metas declaradas do presidente francês, Emmanuel Macron, desde sua primeira campanha presidencial. Essa prioridade é compartilhada pelo chanceler alemão, Olaf Scholz, conforme declarou em Praga no final de agosto.
"A soberania europeia significa essencialmente que nos tornamos mais autossuficientes em todas as áreas, que assumimos maior responsabilidade por nossa própria segurança, que estamos ainda mais unidos na defesa de nossos valores e nossos interesses no mundo", disse Scholz.
Os dois principais motores europeus, no entanto, estão cada vez mais distantes desde o início da guerra. A dupla que costuma comandar a economia e a indústria do continente está tomando rumos diferentes, esfarelando essa unidade europeia tão desejada.
A Alemanha decidiu investir 100 bilhões de euros (519,49 bilhões de reais) para modernizar o exército do país, uma iniciativa que não cabe no orçamento francês e que, pelo mesmo motivo, não pode ser replicada nos outros membros dos Vinte e Sete.
Os países da Europa Central, Báltica e Nórdica acusam a Alemanha e a França de terem subestimado a ameaça russa e estão recorrendo aos Estados Unidos para garantir sua segurança, anunciando que a União Europeia não se basta para proteger os países do continente.
“Naturalmente, a guerra causa um descrédito em relação às organizações internacionais como fomentadoras da paz social”, analisa Viviane Knoerr, coordenadora de pós-graduação do Unicuritiba e pós-doutora em Direito pela Universidade de Coimbra.
Nesse cenário, os Estados Unidos e a OTAN ganham mais força no Velho Continente, com a adesão, por exemplo, da Finlândia e da Suécia.
Crise energética
Enquanto a maioria dos países europeus, a começar pela França, criaram medidas rigorosas para reduzir o consumo de energia em meio à crise de abastecimento gerada pela guerra, o país comandado por Scholz manteve em certa medida o consumo, desembolsando 200 bilhões de euros (1,3 trilhão de reais) em ajuda a residências e empresas enfraquecidas pela disparada dos preços da energia.
Apesar de passar a importar gás de outros países, reduzindo a dependência da Rússia, a Europa ainda não se reorganizou na distribuição de combustível que chega aos portos. Com a proximidade do inverno, a oferta de energia e os preços ainda vão continuar abalando o bloco.
Algumas saídas encontradas pelos líderes europeus envolvem a construção de meios para transporte de gás. Seriam alternativas de médio prazo, mas iriam na contramão da agenda de diminuição do consumo de combustíveis fósseis, que já perdeu força desde o início da guerra. A Agência de Energia Europeia prevê que haja, neste ano, um crescimento de 7% no uso desse tipo de energia, por exemplo.
A Alemanha, que, ao contrário da França, fugiu da energia nuclear nas últimas décadas para cumprir com seu projeto ambientalista, precisou regredir ainda mais recorrendo à abertura de antigas usinas de carvão.
Recentemente, em uma medida tomada isoladamente pela Espanha e por Portugal, mas com autorização da UE, os países ibéricos criaram um complexo sistema de dissociação dos preços do gás e das tarifas de eletricidade dos de outras formas de energia.
Outros Estados-Membros do bloco solicitaram a Comissão a realizar um estudo de impacto dessa “exceção ibérica” para uma possível aplicação em outros pontos do continente.
Esse modelo, no entanto, já apresentou problemas e fragilizou relações europeias: a Espanha aumentou consideravelmente as exportações para a França (só em julho, foi um crescimento de 80%), saturando as relações entre os países. Enquanto os espanhóis pagam uma indenização a empresas de gás locais para produzir eletricidade, os franceses aproveitam os baixos preços tabelados do país vizinho para comprar essa eletricidade espanhola.
Crise industrial
De acordo com a União Europeia dos Metais, a produção de alumínio e zinco caiu pela metade no bloco em 2022. Esse fenômeno acontece em um momento em que a transição energética vai absorver grandes quantidades desses metais, agora considerados estratégicos.
O ministro da Indústria da França, Roland Lescure, visitou a fábrica de alumínio de Dunquerque, no norte da França, que consome o equivalente ao que é consumido em toda a cidade de Marselha em eletricidade. Ele apontou que a fatura da empresa aumentou, neste ano, de 200 milhões de euros (mais de 1 bilhão de reais) para 600 milhões de euros (cerca de 3 bilhões de reais), segundo Philippe Escande, editorialista econômico do Le Monde. A produção dessa fábrica já foi reduzida em mais de 20%.
Já a BASF, principal grupo químico da Alemanha, anunciou que reduzirá seus custos na Europa "o mais rápido possível e permanentemente".
Isso quer dizer que os produtos químicos europeus, presos entre regulamentações rígidas e preços estratosféricos de energia, não têm mais muito futuro no continente.
A BASF decidiu investir no sul da China, na cidade de Zhanjiang. Serão investidos 10 bilhões de dólares na nova sede (mais de 51 bilhões de reais).
Isolamento
Durante uma reunião no final do mês de outubro em Bruxelas, Macron disse, em entrevista coletiva, que “não é bom” para a Europa que a Alemanha “se isole” e fez uma reunião com Scholz para tentar aproximar as abordagens dos países no controle de preços de gás e eletricidade.
“Estou há mais de cinco anos tentando propor, avançar e construir a unidade”, destacou o presidente francês. “Espero que possamos realmente encontrar meios de convergência”, concluiu Macron.
Segundo o cientista político Ivan Krastev, no entanto, esse movimento de isolamento, não só da Alemanha, é inevitável. Em entrevista ao diplomata Michel Duclos, referindo-se à onda de refugiados, ao Brexit, à pandemia de Covid-19 e à guerra, Krastev ressalta que essas “turbulências” levantaram “fortes correntes nacionalistas entre os estados membros da União Europeia”.
O cientista aponta que a Polônia, a Itália e a Suécia, que elegeram novos nomes menos “eurocêntricos” para o poder se distanciam cada vez mais da unidade do bloco.
Fora da UE, Reino Unido também enfrenta crise
O Reino Unido vive o pior cenário econômico dos últimos 50 anos. Ao mesmo tempo, o contexto político gera instabilidade e dificulta a recuperação britânica. O isolamento devido ao Brexit - a saída da União Europeia – com falta de caminhoneiros e outros profissionais devido ao fechamento de portas a trabalhadores imigrantes, junto com as consequências da pandemia e, principalmente, da guerra levaram à renúncia de Boris Johnson, ao comando relâmpago de Liz Truss e a consequente nomeação de Rishi Sunak, que recebe uma bomba econômica para administrar.
Autoridades do serviço nacional de saúde (NHS, na sigla em inglês) alertaram para o risco de empobrecimento da população e de uma crise humanitária. De acordo com a End Fuel Poverty Coalition, cerca de 10,5 milhões de famílias entrarão em “nível de pobreza” até o começo do ano que vem no Reino Unido. O governo britânico define como “pobreza” quando a renda familiar anual é inferior a 60% da média salarial do país, que foi de 31 mil libras anuais (cerca de 187 mil reais) em 2021, segundo estatísticas oficiais.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê que os britânicos terão o menor crescimento entre os sete países mais ricos em 2023. No bolso dos mais de 67 milhões de habitantes, a situação já está pesando. Cortes de gastos e mudança no estilo de vida se tornaram realidade da maioria das famílias e devem atingir mais de 20% delas no começo do ano que vem.