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Ao saber da provável vitória de seu afilhado político, Luis Arce, nas eleições presidenciais da Bolívia, o ex-presidente Evo Morales disse que sua volta ao país é uma “questão de tempo”. Ele está exilado na Argentina desde o fim de 2019, após o pleito que o elegeu para um quarto mandato em outubro do ano passado ter sido considerado fraudulento pela Organização dos Estados Americanos (OEA).
Agora, com a volta do Movimento para o Socialismo (MAS) ao poder, a pergunta que fica é: que papel Evo deve ter na gestão de seu pupilo, cuja candidatura foi articulada pelo ex-presidente a quase três mil quilômetros de distância? O ex-mandatário, inclusive, já fala sobre a eleição de Arce no plural.
“Não somos vingativos, não somos revanchistas, todos estão convidados a trabalhar. As eleições não acabam apenas no dia da votação, é [uma briga] todos os dias. O camarada Lucho [Luis Arce] com certeza vai implementar essa forma de trabalhar, de reunir, de ouvir, aprovar, recolher projetos, novas iniciativas de desenvolvimento económico e social”, disse.
Antes de tudo, é preciso ressaltar que Morales e Arce, apesar de aliados, são bastante distintos. O primeiro, de origem rural, é carismático e tem um perfil considerado mais “popular”. Arce, por sua vez, é oriundo de uma família de professores de La Paz, com ensino superior (Economia) e até mestrado no exterior, cursado em uma universidade do Reino Unido. Muitos consideram que, antes de ser político, o afilhado de Evo é um tecnocrata.
A escolha do economista para ser o nome do MAS nas eleições de 2020 chegou a causar desconforto no próprio partido, principalmente pelo fato de ele ter uma origem urbana e de classe média e não ser tradicionalmente ligado aos movimentos sindicais e camponeses que são, em sua maioria, a base da legenda.
Evo desgastado
Arce nunca escondeu que Evo deveria voltar à Bolívia, especialmente para que possa se defender pessoalmente de acusações contra ele que chegaram à Justiça. O socialista é acusado de terrorismo e financiamento para o terrorismo, delitos que podem ser punidos com até 20 anos de reclusão no país. Outras 100 pessoas ligadas ao governo de Morales também foram acusadas.
Ainda, em agosto, o governo interino da Bolívia, chefiado pela senadora Jeanine Añez – que chegou a concorrer ao pleito de 2020, mas renunciou à candidatura para reduzir a fragmentação da oposição e, consequentemente, as chances de vitória do MAS – acusou Evo Morales de estupro, abuso sexual e tráfico de pessoas. A alegação é de que o ex-chefe do Executivo boliviano iniciou um relacionamento com uma jovem, que hoje tem 19 anos, quando ela era menor de idade. Ele nega.
Por esses motivos não é exagero afirmar que a figura de Evo está, em termos, desgastada na Bolívia – isso sem contar o fato de que ele passou 13 anos no poder –, ainda que o apoio entre sua principal base, os indígenas bolivianos, seja bastante significativo. Some-se a isso o fato de que durante a sua campanha, Arce buscou passar uma imagem de que o padrinho não deveria ser uma sombra em sua futura gestão. Ao saber que era, provavelmente, o novo presidente do país, o economista também falou sobre governar com “unidade”.
“Vamos governar para todos os bolivianos, vamos construir um governo de unidade nacional, vamos construir a unidade de nosso país. Vamos reconduzir nosso processo de mudança, sem ódio, aprendendo e superando nossos erros”, disse.
Se essa promessa for levada mesmo a sério pelo novo presidente, a expectativa é de que, pelo menos no início da gestão, Evo não ocupe nenhum cargo formal no governo, justamente para não dar munição para a oposição, que se uniu como nunca antes nessas eleições com o objetivo de derrotar o MAS.
“Não sou Evo”
Em entrevista concedida à BBC após as eleições, Arce foi questionado diretamente sobre uma eventual influência do mentor em seu governo. Isso porque, em determinado momento da corrida presidencial, o então candidato Luis Fernando Camacho, ligado à direita na Bolívia, disse que “Luis Arce não é um candidato, é um fantoche do ditador Evo Morales”.
Ao repórter, o economista respondeu: “já disse muitas vezes, não sou Evo Morales”. O presidente eleito também disse que, se quiser ajudar, o ex-mandatário será bem-vindo. “Mas isso não significa que Morales estará no governo; será meu governo. Se ele quiser voltar à Bolívia e nos ajudar, não há nenhum problema. Ele que vai decidir. Eu não vou decidir por ele”, completou.
Mesmo assim, é difícil acreditar que Morales ficará completamente à parte do novo governo. Por enquanto, contudo, sua atuação deve ficar limitada aos bastidores.
Resultado oficial
Até o começo da manhã desta quarta-feira (21) 86,4% das urnas haviam sido apuradas. O MAS de Luis Arce aparecia com 54% dos votos e Carlos Mesa, o principal adversário na corrida presidencial, estava com 29,5% dos votos válidos. O candidato da direita, Fernando Camacho, aparecia com 14,3%. A vitória de Luis Arce foi declarada após pesquisa de boca de urna e o resultado oficial está confirmando a grande vitória prevista por dois institutos de pesquisa. Mesa e a presidente interina, Jeanine Áñez, reconheceram a vitória do candidato do MAS ainda na segunda-feira.