Criadas com o objetivo de apaziguar conflitos, garantir estabilidade política e ajuda humanitária, as missões de paz desenvolvidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) há algum tempo são alvo de questionamentos. Nos últimos anos têm aumentado as críticas à atuação do órgão, por não ter conseguido promover grandes avanços em regiões problemáticas como Afeganistão, Síria e as Coreias.
Nos próximos meses, um brasileiro vai assumir o comando da missão de paz na República Democrática do Congo, país africano que sofre com a guerra civil há quase duas décadas. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, 60 anos, será o coordenador da única missão autorizada a intervir diretamente no conflito, de modo a neutralizar os grupos armados.
Com a experiência de quem comandou a missão no Haiti entre 2007 e 2009, Santos Cruz não vê descrédito sobre a atuação da ONU. "Quando a ONU coloca uma missão em prática existe um excesso de expectativa. E quando se espera demais existe um descompasso", afirma em entrevista à Gazeta do Povo.
Como deve atuar essa missão de paz no Congo, já que atualmente ela é a única com autorização para intervir em um conflito?
As missões são estabelecidas com a finalidade de estabilizar o país e trazer a paz para algumas regiões. Entre essas tarefas estão promover a governança e a prática política de maneira mais organizada, protegendo principalmente os civis, que não estão envolvidos diretamente nos conflitos e que são os que mais sofrem. Nosso foco principal serão crianças, mulheres e idosos, que acabam sofrendo com a falta de assistência humanitária. Também é função da ONU facilitar acordos políticos e paralisar os conflitos. Nossa missão final não muda, que é estabelecer a paz onde existe conflito.
Qual é o quadro que lhe espera no país?
Tenho acompanhado a situação do Congo, que vem de uma história bastante conturbada. O país sofreu muito com a divisão política, com os diferentes interesses e a ação de grupos rebeldes. São essas as áreas que precisam ser estabilizadas, especialmente na parte leste do país, onde estão os problemas mais graves.
O senhor acredita que existe hoje um descrédito das missões da ONU, que muitas vezes acabam não conseguindo pacificar conflitos e garantir a estabilidade de determinadas regiões?
Eu vejo as críticas como normais porque, quando se estabelece uma missão da ONU, há uma esperança de que todos os problemas sejam consertados. É preciso entender que as missões só existem em locais que já são problemáticos, que têm uma estrutura frágil, um governo frágil e conflitos sérios. Às vezes, quando a ONU coloca uma missão em prática, existe um excesso de expectativa. As missões de paz têm atuado com vigor, mas a influência da ONU também tem suas limitações. E quando se espera demais existe um descompasso. Toda missão tem seus altos e baixos, mas no geral tem-se conseguido bons resultados, com efeitos sociais positivos, estabilização política e ajuda humanitária.
O senhor comandou a missão de paz no Haiti entre 2007 e 2009. Quais as diferenças entre aquela missão e a que vai ao Congo?
Cada missão é única e a complexidade varia de acordo com as particularidades de cada país, mas existem algumas comparações que podem ser feitas. O Haiti é um país mais próximo e, por estar na América Latina, tem uma realidade que se aproxima um pouco mais de nós. Outra diferença importante é que o Haiti tem uma dimensão territorial pequena, enquanto o Congo tem praticamente o tamanho da Europa Ocidental, é um território bastante grande para ser ocupado. E as motivações dos conflitos também são diferentes. No Congo se trata de um conflito étnico, mais complexo e que tem características muito específicas.
Em que a experiência adquirida no Haiti pode ajudar nessa nova missão?
A experiência ajuda muito, já que no Haiti conseguimos colocar em prática ações importantes no processo de pacificação. E a forma de atuar deve ser semelhante, já que o foco principal são as mesmas pessoas, aquelas que estão vulneráveis e sofrendo mais.
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Conflitos
Em quase duas décadas, guerra civil no Congo deixou milhões de mortos
Com quase 70 milhões de habitantes, a República Democrática do Congo é o segundo maior país da África. Os conflitos no país,
anteriormente chamado Zaire, tiveram início em 1994, após o genocídio de Ruanda. Em seu período mais sangrento, entre 1996 e 2003, a guerra civil deixou cerca de 4 milhões de mortos, segundo a ONU.
Diversos grupos rebeldes se ramificaram pelo país, sendo que o maior deles é o Movimento 23 de Março (M23), formado por ex-militares e que em 2012 tomou o controle de diversas áreas do Congo. Desde julho de 2010, quando a missão foi criada, 55 soldados da ONU morreram em ataques rebeldes.
Pioneira
No último dia 28 de março, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU deu à missão de paz no país um mandato para ocupar territórios dominados por grupos rebeldes, em especial o M23. É a primeira vez que uma missão tem autoridade para usar da força a fim de recuperar as áreas dominadas pelos rebeldes.
O Conselho de Segurança diz que o caso tem "base excepcional", "não cria precedente" e também não prejudica os princípios que gerem as missões de paz.