Crianças de apenas de 11 anos de idade estão sendo decapitadas por extremistas islâmicos na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, revelou nesta terça-feira (16) a ONG internacional Save The Children, que ouviu relatos de famílias que fugiram da região depois de passar por experiências traumatizantes nas mãos dos terroristas.
Uma mulher, de 28 anos, contou que seu filho de 12 anos foi decapitado perto de um lugar onde ela estava se escondendo com seus outros três filhos. “Naquela noite, nossa aldeia foi atacada e casas foram queimadas. Quando tudo começou, eu estava em casa com meus quatro filhos. Tentamos escapar para a floresta, mas eles pegaram meu filho mais velho e o decapitaram. Não podíamos fazer nada porque também seríamos mortos”.
Outra mãe, de 29 anos, lamentou não ter tido a oportunidade de enterrar o filho de 11 anos assassinado por militantes extremistas. “[Após a morte do filho] Fugimos para a casa de meu pai em outra aldeia, mas alguns dias depois os ataques começaram lá também. Eu, meu pai e os filhos passamos cinco dias comendo bananas verdes e bebendo água de bananeira até chegarmos ao transporte que nos trouxe aqui”.
A insegurança no norte de Moçambique aumentou no último ano, com relatos de invasões a vilarejos e de assassinatos cada vez mais frequentes. Desde que o conflito começou, em 2017, mais de 3 mil pessoas – inclusive 1.300 civis – morreram e 700 mil se viram obrigados a fugir de suas casas devido à insurgência de extremistas ligados ao grupo terrorista Estado Islâmico.
“Relatos de ataques a crianças nos atormentam profundamente. Nossa equipe foi levada às lágrimas ao ouvir as histórias de sofrimento contadas por mães em campos de deslocados. Essa violência precisa parar e as famílias deslocadas precisam ser apoiadas enquanto se orientam e se recuperam do trauma”, disse Chance Briggs, diretor da Save the Children em Moçambique.
No ano passado, em novembro, mais de 50 pessoas foram decapitadas em um campo de futebol em Cabo Delgado, segundo a imprensa local. Meses antes, outras dezenas tinham sofrido o mesmo destino após um ataque a uma vila. Sequestros, contrabando, torturas e prisões arbitrárias também ocorrem durante operações do governo contra jihadistas, segundo organizações internacionais de direitos humanos.
O que está acontecendo em Moçambique?
Segundo um relatório do Centro de Estudos Internacionais Estratégicos (CSIS), o conflito em Cabo Delgado, a província mais pobre de Moçambique, começou em outubro de 2017, quando um grupo de homens armados atacou três estações policiais em Mocimboa da Praia. Entre os estudiosos do tema, não há consenso sobre o nome do grupo. Alguns os identificam como Ahlu Sunna wa Jama (ASWJ), mas é mais popularmente conhecido como Al-Shabab, embora não se saiba de uma relação com o grupo jihadista da Somália que leva este nome.
Os militantes extremistas também não têm uma ideologia oficial ou uma pauta específica. O governo de Moçambique afirmou, em um processo de 2019, que o grupo busca “criar uma nação independente no norte de Moçambique e no sul da Tanzânia”. Os locais, por sua vez, relataram que eles querem impor a Sharia, a lei islâmica, na região.
De acordo com os pesquisadores do CSIS, o ASWJ é composto predominantemente por jovens Quimuane, “um grupo historicamente muçulmano e cujo sustento e identidade estão enraizado nos recursos e na cultura costeira”, mas que ao longo dos anos foi marginalizado pelo governo local. Nas poucas declarações públicas que fez até hoje, o ASWJ criticou o governo central de Moçambique pelos maus-tratos aos pobres, e em particular aos muçulmanos.
A BBC News, que enviou repórteres para a região do conflito recentemente, afirma que os militantes extremistas de Cabo Delgado juraram lealdade ao autointitulado Estado Islâmico, mas a relação entre eles não é muito clara. O autointitulado Estado Islâmico afirma que realizou vários ataques em Moçambique e parece estar fornecendo treinamentos em vídeo, mas analistas afirmam que provavelmnte o ASWJ age por conta própria, sem coordenação com o grupo terrorista.
Respostas à crise
Cabo Delgado, no norte de Moçambique, é bastante pobre, mas a descoberta de uma mina de rubi e uma enorme jazida de gás no final de 2010 deram esperanças de uma vida melhor para os habitantes, contudo os benefício dos recursos minerais foram usufruídos pela elite governante: o partido Frelimo, que governa o país desde 1975.
Essa situação de abandono é explorada pelos terroristas. Uma matéria da BBC aponta que pregadores islâmicos atraem os jovens com o discurso de que sob a lei da sharia as desigualdades diminuiriam.
Os pesquisadores da CSIS afirmam que sanções econômicas para enfrentar os insurgentes são praticamente inviáveis porque o grupo se mantém basicamente de pilhagem. O governo local tenta uma resposta militar, porém as forças da região não conseguem se organizar para debelar o conflito.
O escopo cada vez maior dos ataques do ASWJ, que fez incursões até na Tanzânia, é um indicativo das deficiências da abordagem atual para combater o grupo. A União Europeia concordou no mês passado em fornecer treinamento às tropas locais e também um pacto de defesa mútua entre a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral foi cogitado.
Uma análise do Council of Foreign Relations aponta que além de tudo é preciso atuar nas causas subjacentes à crise e desenvolver a região. Uma maior presença do governo de forma a prover serviços básicos deve arregimentar maior apoio popular e diminuir as possibilidades de recrutamento por parte dos terroristas. Essa pode ser uma solução duradoura para a região, mas certamente esbarrará na corrupção governamental - problema crônico de Moçambique. Contudo, a lembrança recente do que aconteceu na Síria é um fator que pode levar o governo local a pensar diferente.
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