O presidente da Argentina, Alberto Fernández, escolheu seu novo ministro da Justiça: Martín Soria, um deputado kirchnerista que vai substituir Marcela Losardo, uma pessoa de confiança de Fernández há muitos anos que decidiu renunciar ao cargo na semana passada após pressões internas. Com a mudança, anunciada nesta segunda-feira (15), a pasta da justiça ficará lotada com nomes, no primeiro e segundo escalão, que apoiam totalmente as batalhas judiciais de Cristina Kirchner.
Ao aceitar a indicação, Martín Soria alinhou seu discurso com o da vice-presidente dizendo nesta terça-feira (16) que vai buscar "acabar com o lawfare” na Argentina. Lawfare é um termo exaustivamente usado pela esquerda sul-americana para explicar por que tantos de seus líderes, como Lula, por exemplo, foram formalmente acusados de corrupção: trata-se de perseguição por via judicial. Kirchner é ré em vários processos judiciais e se viu no centro de grandes escândalos de corrupção nos últimos anos – o mais recente deles, deflagrado em 2018, ficou conhecido como “Cadernos de Propinas”. A ex-presidente alega inocência e diz ser vítima de perseguição de juízes aliados ao macrismo.
“Deve haver uma relação institucional, transparente, de ida e volta. Um dos nossos principais objetivos é acabar com o lawfare e a mesa judicial. Mas a relação tem que ser totalmente institucional, não dentro de quatro paredes, atrás e escondida da sociedade”, disse Soria à Rádio 10, salientando os desafios de “transformar o desastre que fizeram no Poder Judiciário”.
“Não vão contar comigo para fazer isso, para receber secretamente juízes e promotores”, acrescentou, referindo-se a encontros entre o então presidente Maurício Macri e o juiz Gustavo Hornos, presidente da Câmara Federal de Cassação Penal, que agora serão investigados pelo presidente do Conselho de Magistratura, alinhado ao kirchnerismo.
Falando sobre a situação judicial de Cristina Kirchner, Soria garantiu que não haverá troca de juízes nos processos, porque a própria vice-presidente quer ver “a mesma Justiça” que a investigou e abriu processos contra ela, declarando-a inocente – apesar das críticas e denúncias do kirchnerismo a juízes do Tribunal de Cassação Penal que devem julgar vários processos nos quais a vice-presidente e seus aliados estão envolvidos.
O novo ministro da Justiça disse também que vai continuar trabalhando para nomear um novo procurador-geral, cargo ocupado interinamente por Eduardo Casal, a quem o kirchnerismo considera como parte atuante do “lawfare” contra Kirchner, mas que não consegue substituí-lo porque a aprovação precisa de dois terços dos votos dos senadores, uma maioria qualificada que o governo não tem na Câmara Alta. Para destravar a indicação, o oficialismo propôs uma reforma na lei que rege o Ministério Público, a fim de permitir a aprovação de um procurador-geral da República por maioria absoluta (50%+1), entre outras alterações. A proposta já foi votada pelo Senado, mas travou na Câmara dos Deputados, como ocorreu com a reforma judicial proposta por Fernández há oito meses.
As declarações de Soria foram prontamente criticadas pela oposição como uma maneira de ampliar o poder de Cristina Kirchner para acabar com os processos de corrupção aos quais ela e seus aliados respondem – embora isso seja bastante improvável.
Soria chega ao ministério da Justiça para dar mais voz às alegações de Cristina Kirchner. Losardo, a ex-ministra e amiga de Fernández não tinha esse interesse, tanto que foi criticada por partidários da vice-presidente por não dar o devido apoio à reforma judicial proposta por sua própria pasta.
“Soria chega para compor uma linha de funcionários que seja toda coerente com os interesses de Cristina”, explica Flávio González, professor de Direito da Universidade de Buenos Aires. “Mas isso, creio, não representa muitas novidades, porque o kirchnerismo já estava fazendo todo o possível” para lidar com os assuntos relacionados à justiça que interessam ao grupo político. Ao dizer “todo o possível”, González se refere a formas de pressionar a justiça, como enviar mensagens a juízes, por terceiros, para que avancem em uma ou outra direção; denunciar juízes ao Conselho de Magistratura; transladar juízes, preencher cargos desocupados para que os tribunais sejam compostos com maiorias alinhadas ao kirchnerismo; entre outros métodos.
González também acredita que Soria pode fazer pouco para que a proposta de reforma judicial do governo avance na Câmara de Deputados, já que Sergio Massa, presidente da Casa e aliado do governo, não tem tanto interesse na pauta judicial. “Massa não é um kirchnerista. Foi um aliado tático para a eleição de Fernández, mas é um líder peronista que sempre teve seu próprio jogo e agenda, vinculada a temas mais econômicos”, disse, acrescentando que, neste momento, tudo indica que o governo não tem votos suficientes para aprovar a reforma judicial.
A troca no ministério da Justiça, então, pode ser um gesto de Alberto Fernández para sua vice, argumenta González. O presidente estaria entregando tudo o que pode para que Kirchner siga com sua agenda política, abdicando de uma aliada confiável (Losardo), para que não recaia sobre os ombros dele a culpa pela falta de avanços desta agenda tão importante para Kirchner.
Martín Soria vai assumir o Ministério da Justiça na próxima semana, em 26 de março.