Margaret Atwood, uma das criadoras das distopias - o oposto de uma utopia - mais convincentes de hoje, diz que a verossimilhança e a familiaridade de sua obra vêm do fato de que cada componente da história, cada situação atroz, aconteceu alguma vez em algum lugar do mundo. Em "O Conto da Aia", sua história futurista sobre uma sociedade regida por um sistema patriarcal opressor que categoriza e explora as mulheres de acordo com a sua capacidade de procriar, os eventos são ficção, mas já aconteceram com alguém na vida real. Da mesma maneira, qualquer venezuelano poderia dar testemunho de uma ou mais das penúrias que os personagens de "Noite em Caracas", de Karina Sainz Borgo, enfrentam.
O livro narra em primeira pessoa a história da Adelaida Falcón, uma mulher venezuelana que encontra sua única chance de sobrevivência na posse de outra nacionalidade (a espanhola). O título selecionado para a versão em português, embora aponte para temas do livro como o paradoxo da escuridão que domina uma cidade abençoada com sol e clima de primavera a maior parte do ano, perde um pouco a conexão com a história que tem o título da edição na língua original: “A filha da espanhola”. Na Venezuela, os antepassados europeus e, neste ponto, de qualquer outra nacionalidade, são um salva-vidas.
Para os venezuelanos, o mundo cinzento que Adelaida habita, no qual não há quantia de dinheiro líquido ou plástico capaz de pagar o que as coisas simples custam; e em que cadáveres não reclamados nas ruas, transações do mercado negro em euros para pagar absorventes femininos, seringas, gazes e enterros fazem parte da vida cotidiana, não é uma história de outro lugar ou outro momento. Eles fazem parte do horror com que lidamos e do resumo diário de notícias que passa de telefone para telefone pelo WhatsApp. Não estamos alheios aos estudantes torturados de um regime despótico para nos ensinar as consequências do protesto; nem à sobrevivência entre apagões, tiros e grupos armados saturados de ressentimento e autorização para despojar, ocupar, ameaçar e matar. Tampouco o desejo de escapar da Venezuela é estranho para nós.
Karina Sainz Borgo conta para os outros entenderem, e isso se percebe.
“Tem algumas coisas que soam muito espanholas e que uma venezuelana não diria", é o comentário que me fez uma amiga venezuelana sobre a narração de Adelaida Falcón. Eu tive o mesmo sentimento ao ler e achar termos do espanhol da Espanha, como “váter” para se referir ao vaso sanitário (que na Venezuela se chama poceta), ou descrições distantes do meu país e sua dinâmica. As descrições de Adelaida, elegantes, espetaculares e quase perceptíveis com as papilas gustativas, são em momentos tão sentidas como sal espalhado sobre carne crua em feridas abertas, e em outros desprendidas e frias, como se viessem de um estranho que pensa em algo não lhe pertence.
É porque a história dela é contada do exterior e do futuro. No momento em que Adelaida decide contar como escapou da Venezuela, sua linguagem e seu olhar já têm a influência da passagem do tempo e da distância. Ou pelo menos essa é a resposta que encontrei quando me perguntei de onde, e em que momento de sua vida Adelaida nos conta sua experiência de venezuelanidade. Nesse momento, ela já se mimetizou num novo ambiente, teve que desistir de suas palavras para se fazer entender. Os migrantes não paramos de sobreviver, e a capacidade de se explicar acaba sendo vital para a sobrevivência.
Fazer-nos entender fora da Venezuela é um dos desejos mais desesperados que temos os venezuelanos. Tanto para aqueles que gritam de dentro, quanto para aqueles que integramos a diáspora de mais de quatro milhões. Nos esforçamos para explicar por que saímos ou por que ficamos. Como é difícil contar a desgraça moderna da nação líder da democracia e desenvolvimento que foi uma vez a Suíça da América Latina com petróleo infinito no subsolo. Como é difícil explicar uma ditadura que começou com um homem que deu dinheiro, petróleo e casas em todo o mundo, e patenteou a marca do “Socialismo do Século XXI” para viver e dormir sobre os louros de seus royalties, ele e todos seus descendentes biológicos e políticos.
“Por muitos anos senti que não tinha o direito de falar sobre o país; nós que estamos fora nos sentimos culpados. Finalmente, encontrei uma maneira de contar nossa história através de uma literatura que fosse bonita e interessante de ler”, diz a autora que emigrou da Venezuela e se estabeleceu na Espanha em 2007, e que define como temas recorrentes de sua exploração literária a memória, a perda e a morte. Noite em Caracas, onde todos os personagens são simultaneamente vítimas e executores, sua "carta de amor ao país", é um fenômeno literário já traduzido em 25 idiomas.
Entrevista com Karina Sainz Borgo:
Há muita curiosidade no mundo sobre diferentes aspectos da vida dos migrantes venezuelanos, seus trajetos, seu sucesso ou infelicidade no lugar de destino. Por que você escolheu contar a fuga de Adelaida da Venezuela?
Me pareceu importante falar sobre como uma pessoa desaparece e se reinventa. Eu queria me colocar no lugar daqueles que têm que fazer qualquer coisa para sobreviver. Também queria explorar a dor e o desespero do luto. Deixar a Venezuela para muitos requer loucura e desespero. Não queria dizer “quem sai é salvo”; Adelaida escolheu uma opção quando não tem mais nada na Venezuela, mas tinha a obrigação de sobreviver. É uma história sobre a dor da perda e a sobrevivência. Todo mundo que perdeu alguma coisa se pode sentir identificado.
Você acha que o imigrante forja uma nova identidade quando emigra?
Sim, e você não pode controlá-lo. Quando você vai embora, você experimenta um processo lento no qual uma parte de você desaparece. É doloroso, mas bonito. Isso dá origem a algo novo.
A Venezuela se tornou um lugar onde a morte está normalizada?
A Venezuela é um lugar tão bonito quanto terrível, é como um país carnívoro onde a vida vale pouco. A vida tem pouco valor e também o cadáver. Nós nunca vimos a morte e a perda como um produto da política.
E a morte está em todas as partes. É muito impressionante a história de Adelaida sobre sua paixão na infância com a foto de um cadáver no jornal.
Essa memória é minha. Com dez anos, na Venezuela, vi na capa de um jornal a foto de um menino, um jovem cadete com os olhos cheios de sangue. Eu não entendi a crueldade da imagem. Eu me apaixonei por ele. Eu pensei que ele estava adormecido. Eu queria contar isso no meu livro. Minha primeira elaboração humana de compaixão foi esse menino.
Você acha que a distância de sua emigração ajudou na narração de Noite em Caracas? A separação temporária, geográfica e emocional ajuda a contar uma história tão dura?
Foi fundamental. Se eu não tivesse colocado o Atlântico no meio, eu não teria visto as coisas do mesmo jeito. Quando saí da Venezuela senti uma profunda sensação de desenraizamento. Senti que o lugar onde nasci não me entendia e tampouco me reconhecia. Fiquei muito bloqueada com o país por seis ou sete anos. Eu tive um conflito com a Venezuela. Eu me senti expulsa pelo país e culpada. Teve que passar tempo para que eu me assentasse e soubesse como contar isto.
Você é venezuelana, espanhola ou um pouco de ambas?
As duas coisas. Eu me sinto muito venezuelana, mas ao mesmo tempo me sinto muito espanhola, porque eu ganhei o meu lugar aqui. Mas minhas grandes perguntas são venezuelanas.
De onde vêm as críticas mais difíceis ao seu livro?
Na verdade encontrei muita empatia, mas também algumas críticas “ideológicas”; como se falar de fome significasse ser de direita. A crítica vem da esquerda romântica europeia, daquela que curte o “safári ideológico” e é fascinada por revoluções, mas à distância, de sua zona de conforto. Com histórias como "Noite em Caracas", você estraga o romance para eles. Eu lhes pergunto até que ponto é moralmente sustentável justificar um ditador. Em qualquer caso, os livros e os romances não resolvem problemas. Eles incomodam e introduzem questões problemáticas. Só podem ajudar a pensar.
Karina Sainz Borgo é convidada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).
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