O codinome de hacker de Julian Assange na juventude era "dignamente desleal", uma citação de Horácio. A escolha revela duas características do homem internacional de 2010: o autoassumido papel de justiceiro digital e a sofisticação.Na década de 80, quando ainda tinha cabelos castanhos, o adolescente Assange aprendeu a invadir redes de computador e sistemas de telecomunicações, e se tornou conhecido como um excelente pirata da nascente internet.
Com outros dois hackers, ele formou um grupo chamado Subversivos Internacionais, que se divertia invadindo sistemas na Europa e nos EUA inclusive do Departamento de Defesa e do laboratório nacional de Los Alamos.
Apesar de esse caminho ter conduzido a alguns encontros com a polícia nunca tão graves como os nove dias passados na cadeia em dezembro deste ano, por acusações de estupro na Suécia ele também desenvolveu uma ética pessoal que depois delinearia no livro digital Underground, do qual é coautor. "Não prejudique sistemas de computador que tiver invadido (o que inclui não derrubá-lo); não mude informações nesses sistemas (exceto pela alteração de logs para apagar seu rastro), e compartilhe informações."
Na época, o australiano era um autodidata, conforme relato de Raffi Khatchadourian, que o entrevistou em abril para a revista New Yorker. Assange contou que costumava pesquisar sobre tudo que lhe interessasse, passando horas em bibliotecas. Com a mãe nômade e um meio-irmão, ele se mudou 37 vezes até os 14 anos, recebendo educação em casa e alimentando grande interesse pelas ciências exatas, história e direito.
À sofisticação intelectual que desenvolveu, Assange não acrescenta modos polidos: com frequência em entrevistas manda seus detratores para o inferno, e daí para baixo.
Também é comum que use a exposição midiática para criticar os Estados Unidos. Em sua primeira entrevista após deixar a prisão, ao jornal El País, colocou o apoio do presidente Lula entre um dos mais importantes que recebeu, e acrescentou, sobre sua saída iminente do governo: "[Deve ser porque ele] já não tem de prestar nenhuma lealdade aos EUA."
O clima de conflito também marcou sua família, quando passou por uma fase de completa imersão no trabalho e a esposa o deixou, levando o filho. A briga pela guarda, segundo ele, é o que o deixou de cabelos brancos.
Justiceiro
O papel de Robin Hood digital foi assumido em tempo integral por Assange em 2006, quando criou um site cujo propósito era expor irregularidades cometidas por empresas e governos. O grupo pedia aos internautas que enviassem ao WikiLeaks suas contribuições relacionadas a desvios identificados em seus países. A princípio, a ideia era combater a corrupção estatal chinesa, russa e de governos autoritários da região centroasiática, de forma que as informações captadas e retransmitidas via web fossem colocadas em julgamento público. Outro trabalho que chegou a ser feito foi a comprovação de autenticidade de mensagens de militantes islâmicos.
Mas a iniciativa não parou por aí, e o grupo partiu para divulgações de curiosidades do mundo político, como mensagens eletrônicas da celebridade republicana Sarah Palin, divulgadas em 2008. O crescimento astronômico veio em abril deste ano, quando o grupo obteve, retrabalhou e divulgou um vídeo mostrando militares americanos atirando em militantes iraquianos e mais dois fotógrafos da agência Reuters em Bagdá, cujas lentes gigantes foram confundidas com armas.
Collateral Murder trazia o som ambiente dos militares decidindo sobre o ataque e expôs a arbitrariedade e violência de algumas operações. Também rendeu ao WikiLeaks mais de US$ 200 mil em doações.
Nesse caso, Assange mostrou novamente ter preocupações éticas, já que teria contactado as famílias dos iraquianos cujas mortes estão retratadas do vídeo antes que a exposição ocorresse.
Sua fama aumentou ao longo do ano, na esteira das revelações de documentos militares e diplomáticos, alguns secretos, outros não, do governo americano.
Para os EUA, o estrago não foi tanto pelo conteúdo vazado, que em alguns casos não passa de mexerico. (Um diplomata brasileiro chegou a classificar os diálogos divulgados como "saborosos".) O mais importante foi a identificação de militantes antiamericanos com a causa do australiano e sua deificação.
WikiLeaks
Tudo somado, o WikiLeaks parece ser um empreendimento bem sucedido repleto de boas intenções. Julian Assange se tornou celebridade: seu livro de memórias será publicado em 2011 inclusive em português e seu filme deve sair ainda ano que vem. Até a revista Rolling Stone o escolheu como "estrela de rock do ano".
Mas o fato de a revista Time ter desprezado a aclamação popular por Julian Assange como Personalidade do Ano (o escolhido foi o criador do Facebook, Mike Zuckerberg) revela que não há unanimidade sobre a validade do método e a importância das revelações feitas pelo australiano.
O que a maioria dos "pé-atrás" questiona é de onde Assange tira suas informações e quais são suas reais intenções.