A guerra na Ucrânia agravou a crise alimentar mundial e os estoques de comida equivalem ao suficiente para apenas pouco mais de dois meses. A afirmação é da empresa de dados agrícolas Gro Intelligence e foi recebida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em maio.
"É um fato que pode remodelar drasticamente a era geopolítica", informou à ONU a executiva-chefe da Gro Intelligence, Sara Menker. Os armazenamentos de trigo estão hoje em 20% do consumo anual – deveriam estar, pelo menos, em 35% - e não existem perspectivas de recuperação.
Grande parte dos estoques estão bloqueados na Rússia e na Ucrânia, que, juntos, costumavam produzir cerca de 30% do trigo e 17% do milho consumidos pelo mundo. A Índia, maior produtora de trigo, atrás apenas da China, cancelou a maior parte da exportação, priorizando o abastecimento interno.
Outros grandes exportadores do alimento, que poderiam servir de alternativa - como Estados Unidos, Austrália e Argentina - já alcançaram sua produção máxima. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos prevê um declínio de 16,8 milhões de toneladas até o final da safra 2022/2023 no país, devido à seca.
Estoques estão bloqueados em solo ucraniano
A Ucrânia costumava exportar todos os meses, em média, 6 milhões de toneladas de alimentos - além do trigo, é uma grande produtora de óleo de girassol e milho. Com a invasão russa ao país, a exportação caiu para cerca de 1 milhão de toneladas.
De acordo com a empresa especialista em agricultura mundial com sede na França Agritel, a próxima colheita ucraniana deve ter uma baixa de mais de 50%. Os motivos vão de falta de fertilizantes (que não chegam ao território) à perda de mão de obra.
Devido ao bloqueio de portos e ferrovias, estima-se que cerca de 20 milhões de toneladas de trigo estão bloqueadas em terras ucranianas. Uma pequena parcela ainda consegue ser transportada através da Romênia.
Dada a localização estratégica da Ucrânia, as consequências são globais. Outros países estão interrompendo as exportações, para garantir alimento para a população local. A falta de alimentos e insumos agrícolas é uma urgência mundial.
G7 alerta sobre baixa nas exportações
A Índia, que no começo da guerra estendeu a mão aos países mais pobres que dependiam do trigo ucraniano, precisou fechar os portos. Neste mês, o país asiático anunciou oficialmente que vai priorizar "a segurança alimentar do 1,4 bilhão de habitantes da Índia".
O país precisou proibir as exportações do cereal, além de repassar o aumento dos custos para os agricultores, com fertilizantes, ração e combustível. Depois da declaração indiana, o G7 (formado por Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) fez um comunicado alertando para o "agravamento da crise alimentar".
Muitos países na África, no Oriente Médio e na Ásia são dependentes do trigo exportado pela Ucrânia pelo Mar Negro. O maior importador do cereal no mundo é o Egito, seguido pela Tanzânia e por Moçambique, que agora ficam desamparados.
O G7 pediu à Organização Mundial do Comércio (OMC) que identifique medidas necessárias para evitar os erros da crise mundial de 2008. Na época, houve falta de alimentos, como arroz, soja, trigo, milho e cereais, que gerou aumento das taxas de inflação em todo o mundo, intensificação da crise econômica mundial e fome. De acordo com especialistas, no entanto, a situação já está igual ou pior do que a de 14 anos atrás.
Guerra, pandemia e choques climáticos
Os países importadores também ficam à mercê da inflação dos preços de energia, fertilizantes e alimentos básicos. Tudo isso junto chega a 50% das despesas correntes nos países menos desenvolvidos.
De acordo com o pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marcelo Neri, já estamos em uma crise semelhante à de 2008. "Seja pela guerra na Ucrânia, choques climáticos ou disrupções na pandemia, já estamos em uma grande crise", alerta.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), a inflação de alimentos acumulou uma alta de 58% em abril de 2022, em comparação a fevereiro de 2020 - antes da pandemia. Dessa alta, 28 pontos de porcentagem foram acumulados de outubro de 2021 para cá. "É uma tempestade perfeita em cima de duas crises prévias: a da grande recessão com a escalada da desigualdade e da pandemia", ressalta Neri.
Poucas saídas para o mundo: vantagem para a Rússia
Diante da crise, países da Europa, Estados Unidos, Austrália, Argentina e Brasil foram levantados como possíveis alternativas na produção do trigo. Porém, de acordo com o pesquisador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris, na sigla em francês) Sébastien Abis, "nenhum país pode aumentar as exportações", porque todos já produzem dentro da capacidade máxima e precisam dar conta também da demanda nacional. Ironicamente, a única que poderia exportar mais é a Rússia, apesar das sanções.
De acordo com o Ministério Americano da Agricultura (Usda, na sigla em inglês), existe a previsão de um recuo na produção mundial - especialmente na Austrália e na Argentina -, mas uma alta na Rússia. O chefe de pesquisa de commodities agrícolas do banco holandês Rabobank, Carlos Mera, prevê que o país comandado por Vladimir Putin produza 84,9 milhões de toneladas de trigo neste ano.
Organizações mundiais buscam soluções
"Uma guerra na Europa causa fome na África", diz a chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristina Georgieva. O Egito é uma das grandes preocupações do FMI, junto com Tunísia e Líbano. O órgão mundial anunciou que "está mobilizado para garantir apoio aos mais vulneráveis".
Presidindo a União Europeia, a França criou uma iniciativa que visa a fortalecer as produções nacionais e garantir transparência nos estoques, a Missão de Resiliência Alimentar e Agrícola (Farm, na sigla em inglês).
"O objetivo de curto prazo é acalmar as tensões nos mercados. É essencial que os países mantenham as fronteiras abertas e evitem o excesso de estoques", afirmou em comunicado o Estado francês.
Em relação a essa mobilização europeia, a líder do FMI informou que a iniciativa só terá sucesso se for apoiada pelos principais produtores do G20, Índia, China e Indonésia. Também destaca a importância do envolvimento das organizações internacionais, como FAO e o Fundo da ONU para desenvolvimento Agrícola (FIDA). "A solução a longo prazo passa por uma maior produtividade na África. Isso exige financiamento internacional", destaca Georgieva.
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