As forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti supostamente tiveram centenas de filhos com mulheres e meninas e depois os abandonaram, de acordo com um novo estudo acadêmico. O estudo foi baseado em acusações anteriores de má conduta sexual pelos agentes das forças de paz que tinham a tarefa de proteger a população vulnerável.
Como parte do relatório, publicado na terça-feira no The Conversation, os pesquisadores entrevistaram 2.500 haitianos sobre as experiências de mulheres e meninas locais em áreas que hospedaram a Missão da ONU para a Estabilização do Haiti, também conhecida como Minustah, que durou 13 anos. Desse grupo, cerca de 265 pessoas contaram histórias de crianças geradas por funcionários da ONU - revelando um preocupante cenário de coerção e abuso que deixou meninas de até 11 anos tendo que criar sozinhas seus filhos em condições de extrema pobreza.
Alguns entrevistados relataram casos de estupro e violência sexual, mas as histórias mais comuns contadas pelos haitianos entrevistados descrevem um "padrão comum" em que mulheres recebiam pequenas quantias em dinheiro ou comida em troca de sexo.
A equipe de pesquisa, liderada por Sabine Lee, pesquisadora da Universidade de Birmingham, e Susan Bartels, cientista-clínica da Queen's University em Ontário, não perguntou diretamente aos entrevistados sobre relações sexuais com agentes das forças de paz ou sobre crianças nascidas dessas relações. Os entrevistados levantaram essas questões por iniciativa própria, disseram os pesquisadores.
O artigo cita uma mulher que conta sobre "uma série de meninas de 12 e 13 anos de idade" que foram engravidadas por pessoal da Minustah, que as deixaram "na miséria e com os bebês em seus braços".
Outra mulher simplesmente disse: "Eles colocam umas moedas em suas mãos e deixam um bebê em você".
O relatório envolve agentes da ONU de 13 países, a maioria deles do Brasil e do Uruguai. Isso indica que os soldados eram normalmente repatriados para seus países de origem quando a gravidez era descoberta, deixando as mães sem assistência. As descobertas reacenderam pedidos de organizações de defesa que já alertavam que a ONU deveria agir mais para ajudar as vítimas haitianas.
Em resposta ao relatório, o Departamento de Operações de Manutenção da Paz da ONU disse que está levando a sério as acusações. O combate à exploração sexual e aos abusos cometidos pelas forças de paz é uma das principais prioridades do grupo, afirmou em comunicado.
"Infelizmente, vimos casos envolvendo as forças de paz da Minustah nos últimos anos, embora as acusações tenham diminuído desde 2013", afirmou o comunicado. "Nossa abordagem coloca os direitos e a dignidade das vítimas no primeiro plano das ações para prevenir e responder à exploração e abuso sexual".
A ONU diz que recebeu 116 denúncias de exploração e abuso sexual desde 2007, todas relacionadas às forças de paz no Haiti. Segundo os dados da organização, 29 funcionários uniformizados de missão de paz estão envolvidos em pedidos de pensão ou de reconhecimento de paternidade que envolvem 26 mulheres e 32 crianças.
"A exploração sexual e o abuso por parte do pessoal da ONU podem minar a confiança da população local a quem somos encarregados de apoiar, ajudar e proteger. Não podemos aceitar isso", Nick Birnback, chefe de comunicações das missões de paz da ONU, disse ao Washington Post. "Sob a liderança do secretário-geral António Guterres, fizemos grandes progressos ao abordar esta questão, mas precisamos fazer mais. Nossa política é e sempre será centrada na vítima, e por isso é fundamental que qualquer pessoa que tenha acusações contra pessoal da ONU se apresente para denunciá-los."
As missões de paz da ONU já haviam sido marcadas por denúncias de má conduta sexual. Em 2016, ocorreram os julgamentos dos processos de várias mulheres e meninas da República Centro-Africana que disseram que eram filhas de soldados das forças de paz da ONU.
A missão de paz no Haiti, que começou em 2004 após a queda do presidente Jean-Bertrand Aristide, já estava marcada por denúncias anteriores de estupro e reconhecimento da ONU de que teve um papel na introdução da cólera no Haiti em 2010, provocando um surto que matou 10 mil pessoas e deixou mais de 800 mil infectadas. Alertas relacionados ao envolvimento da ONU no país surgiram novamente em 2017, quando a agência de notícias Associated Press informou que 135 agentes de paz da ONU do Sri Lanka se envolveram em um grupo de exploração sexual que vitimou nove crianças no Haiti - a mais nova delas com 12 anos - de 2004 a 2007.
Em janeiro de 2018, o Bureau des Avocats Internationaux (BAI), com sede no Haiti, entrou com ações de paternidade nos tribunais haitianos em nome de dez crianças que supostamente eram filhas de soldados da missão de paz da ONU. Mas a organização afirma que a ONU não fez sua parte para remediar a situação - e afirmou em uma carta este ano que a ONU "permaneceu sem responder, sem cooperar e sem transparência sobre sua abordagem, falhando em fornecer documentação probatória essencial e assistência adequada e transparente aos clientes".
Em uma entrevista na quarta-feira, Sienna Merope-Synge, advogada da equipe do Instituto para Justiça e Democracia no Haiti, de Boston (EUA), parceiro do BAI, disse que a ONU reteve informações cruciais referentes aos casos das crianças e que isso os impediu de avançar nos tribunais haitianos. A organização procurou a ajuda da ONU para obter pensão alimentícia para as mães das crianças já em 2016.
A ONU afirma que tomou as medidas adequadas para ajudar as vítimas a receber apoio e assistência. Mas Merope-Synge disse que a maior parte do trabalho nesses casos recaiu sobre as mulheres haitianas, que geralmente são pobres, forçando-as a ciclos mais profundos de vulnerabilidade. Ela novamente pediu que a ONU seja mais proativa em suas ações.
"Não deveria caber a uma mulher entrar com uma ação legal no Uruguai ou na Nigéria - a ONU deve garantir que o apoio à criança seja pago e, em seguida, pode recuperar esse dinheiro do país específico", disse ela. "Eles estão em condições de fazer isso, não uma mulher no Haiti tentando desvendar o caminho de uma ação legal internacional muito complexa".
Merope-Synge considerou o relatório publicado nesta semana uma "pesquisa extremamente importante", que deu credibilidade às muitas histórias que a BAI ouviu de mulheres no Haiti. As descobertas do relatório, disse ela, ressaltam deficiências flagrantes no sistema de manutenção da paz da ONU.
"Sabemos a partir de episódios e pelas pesquisas existentes que esse é um problema generalizado no Haiti, mas esses são alguns dos primeiros dados que apontam o quanto o problema é difundido", disse Merope-Synge. "Espero que isso receba a atenção merecida dentro do sistema da ONU".