Uma velha senhora, indesejada e pouco querida, voltou à América do Sul depois de quase um quarto de século. E escolheu a Venezuela para ficar, aproveitando a desorganização política e econômica gerada pelo ditador Nicolás Maduro. Seu nome: hiperinflação, um mal que já assolou diversos países da região, como a Argentina, o Brasil, a Bolívia e o Peru, entre os anos 80 e 90.
Números oficiais sobre o estrago não há, já que a Venezuela não divulga estatísticas desde 2015. Mas estimativas feitas por diferentes órgãos mostram a dimensão do problema. A Assembleia Nacional estima que ela tenha atingido 6.147% nos 12 meses encerrados em fevereiro.
Só nesse mês, segundo a consultoria venezuelana Ecoanalítica, os preços teriam subido 74,4%, o que equivale, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), à inflação registrada no Brasil entre julho de 2008 e março passado.
O serviço de informações financeiras Bloomberg projeta que a inflação pode chegar a 13.000% ao ano em 2018, o que a colocaria como a maior compilada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) desde 1980. A mais elevada, até hoje, foi registrada na Armênia, em 2013: 10.896,2%.
Economistas da Ecoanalítica estimam que a inflação para os mais pobres já tenha atingido os 20.000% ao ano e para a classe média, 11.000%. “Sofre menos com a hiperinflação quem tem algum tipo de privilégio. Só uma minoria ganha com ela”, destaca Simão Silber, professor de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
Impactos maiores entre os mais pobres
Os impactos maiores são entre a população mais pobre, que não tem como se proteger da forte alta nos preços. As gôndolas dos supermercados estão permanentemente vazias e quando há produtos formam-se longas filas.
A pobreza é crescente, aponta um estudo realizado por três universidades venezuelanas, liderado pela Universidad Católica Andrés Bello (UCAB), uma das mais tradicionais do país: 87% dos venezuelanos não tinham condições para se sustentar em 2017. Três anos antes, esse percentual era de 48,4%.
A tendência é de que o problema continue, já que o governo tem pouca margem de manobra para conter a hiperinflação. “O problema já ganhou contornos de uma tragédia humanitária”, afirma o professor.
Um dos reflexos dessa tragédia humanitária é o crescente o fluxo de pessoas em direção ao exterior. Os problemas são mais evidentes nas fronteiras com o Brasil e Colômbia, onde se concentram milhares de pessoas.
O estudo realizado pelas universidades venezuelanas mostra que, entre 2012 e 2017, cerca de 815 mil venezuelanos foram tentar a sorte no exterior. As remessas vindas de fora do país para as famílias atingiram US$ 1,14 bilhão só no ano passado. E a tendência, de acordo com a consultoria venezuelana Ecoanalítica, é de que esse número continue aumentando.
Medidas cosméticas para tentar solucionar o problema
Uma das alternativas que o governo encontrou para disfarçar o problema da hiperinflação foi promover um corte de três zeros no desvalorizado bolívar a partir de 4 de junho. A moeda venezuelana, só no ano passado, perdeu 98% de seu valor frente ao dólar.
Não é a primeira vez que o país adota essa estratégia de cortar os zeros na moeda. Em 2008, o antecessor de Maduro, Hugo Chávez, adotou medida similar.
A medida é cosmética e não ataca de frente as razões da hiperinflação. Dois problemas fundamentais levaram a Venezuela à hiperinflação, diz o professor da USP: a emissão excessiva de dinheiro para financiar os gastos públicos e a desestruturação do sistema produtivo. Empresas privadas foram estatizadas, o que levou a problemas sérios de gestão e eficiência.
“Trocou-se gente que entendia de negócios por quadros integrantes do partido, o que, em muitos casos, acabou resultando em corrupção”, diz Silber.
O setor privado venezuelano enfrenta pesadas restrições para atuar. Além de controlar com mão de ferro a entrada e saída de dólares, o governo venezuelano fixa preços e restringe a venda e distribuição de produtos.
A Venezuela é o terceiro pior país do mundo para fazer negócios, aponta ranking elaborado pelo Banco Mundial. Atrás dela estão a Eritreia e a Somália, dois países no Nordeste da África.
Outro problema que o país caribenho enfrenta é a queda nas receitas decorrentes de seu principal produto de exportação: o petróleo. O preço médio do barril caiu mais da metade entre 2011 e 2017, passando de US$ 110,95 a US$ 51,41, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A queda nos preços foi acompanhada por uma redução na produção, motivada por uma forte perda de eficiência da PDVSA, a estatal petrolífera. Estimativas realizadas pela petrolífera britânica BP indicam para uma retração média anual de 2,2% ao ano no período 2005-15. Atualmente, segundo estimativas da Ecoanalítica, o país, que detém uma das maiores reservas petrolíferas conhecidas, produz 1,5 milhão de barris por dia, equivalente à produção de 1950.
A combinação de queda nos preços e produção menor, devido aos problemas de eficiência na PDVSA, fez com que o governo apelasse para a emissão de dinheiro para financiar os gastos com programas sociais, como as Misiones. “É um problema que não é de hoje, começou lá em 2010-1”, destaca o professor da USP.
Leque pequeno de alternativas
O leque de alternativas para o ditador Nicolás Maduro impedir que a hiperinflação continue na Venezuela é limitada. A principal delas passa por um forte ajuste dos gastos públicos, que limite os gastos do governo ao que é efetivamente arrecadado. Só que isto vai de encontro à sua retórica populista.
Outra estratégia levantada por economistas é a dolarização da economia, seguindo o exemplo do que a Argentina fez nos anos 90. Silber alerta que esta medida não é eficiente. Ele destaca que a reforma fiscal é imprescindível.
“A dolarização é uma saída muito perigosa. O que fazer quando ocorrer uma redução no fluxo de dólares para o país?”, indaga-se ele, lembrando que a Venezuela não emite dólares.