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Marcas internacionais do mundo da moda foram alvo de um grande boicote na China na semana passada. Comentários contra Nike, Adidas, Burberry e seus produtos inundaram as redes sociais e as marcas começaram a ser rechaçadas também por celebridades e influenciadores digitais, que na China têm um papel mais importante do que no Ocidente para impulsionar as vendas. Mas o grande alvo da campanha de boicote foi a cadeia de lojas de roupas H&M. A multinacional sueca foi parcialmente banida da internet chinesa, depois que empresas do setor digital apagaram as menções à marca em mapas, sites e-commerce, aplicativos de mobilidade e de entrega.
A reação dos chineses ocorreu depois que uma declaração da H&M – e de outras empresas – expressou preocupação com o trabalho forçado nos campos de algodão na província chinesa de Xinjiang e disse que não compraria mais a matéria-prima de lá para fabricar seus produtos. Essa declaração havia sido publicada no ano passado, mas viralizou recentemente, dois dias depois que EUA, Reino Unido, Canadá e União Europeia anunciaram sanções contra autoridades chinesas por causa do tratamento do governo da província aos uigures, minoria étnica muçulmana.
“A era do bullying acabou”, disse Xu Guixiang, porta-voz do governo de Xinjiang, em coletiva de imprensa nesta segunda-feira (29). “A China não é mais a China de 1840, e a era em que o povo chinês sofria com a hegemonia e o bullying das grandes potências nunca mais voltará”, continuou, referindo-se à época em que a China assinou tratados desiguais com potências ocidentais. “Esperamos que empresas como a H&M sejam mais perspicazes e distingam o certo do errado”, disse, afirmando também que as empresas multinacionais deveriam entender que “o bastão das sanções” contra Xinjiang prejudicaria as próprias empresas.
A China é um mercado gigantesco e é um centro de vendas cada vez mais importante para marcas de roupas e bens de consumo individuais. Para a H&M, por exemplo, a China foi o terceiro maior mercado de vendas entre dezembro e fevereiro, respondendo por 6% da receita geral. Mas as companhias ocidentais que investem lá frequentemente se encontram em uma posição desconfortável, quando confrontadas sobre ações do regime autoritário de Pequim: em assuntos sensíveis, como o do trabalho forçado em Xinjiang, podem sofrer boicotes dentro ou fora da China, dependendo de como se posicionam.
Após a repercussão negativa na China, a chefe-executiva da H&M, Helena Helmersson, revelou que 20 das cerca de 500 lojas da empresa no país tiveram que fechar as portas. Porém, ela não deu mais detalhes sobre o impacto deste boicote nas vendas e na cadeia de fornecedores chineses.
Helmersson disse também que a companhia continua comprometida com o mercado chinês e que "se dedica a reconquistar a confiança de nossos clientes, colegas e parceiros de negócios na China". Mas observou que a H&M quer “ser um comprador responsável, na China e em outros lugares, e agora estamos construindo estratégias voltadas para o futuro e trabalhando ativamente nas próximas etapas com relação ao fornecimento de materiais”.
O algodão de Xinjiang
A China produz 22% do algodão usado no mundo e 84% deste volume vem das fazendas de Xinjiang. Além disso, a China é um importante player na indústria têxtil mundial, tanto em termos de volume produzido e exportado, quanto em diversidade e capacidade técnica de seus produtores.
No passado, porém, depois que relatórios indicando trabalho forçado nos campos de algodão de Xinjiang começaram a surgir com mais frequência na mídia, a cadeia da matéria-prima na região começou a ser mais pressionada internacionalmente. Em abril, a sede da Better Cotton Initiative, grupo que promove melhores padrões no cultivo de algodão em 21 países, anunciou que suspendeu suas atividades em Xinjiang, na China, devido às preocupações com a prevalência de abusos trabalhistas na região. Foi a partir daí que muitas marcas internacionais deixaram de comprar algodão produzido na região, emitindo as declarações que, quase um ano depois, motivaram o boicote à H&M e outras marcas.
Além disso, em dezembro passado, os Estados Unidos decidiram barrar a compra de algodão e os produtos de algodão da Xinjiang Production and Construction Corps (XPCC), um dos maiores fabricantes da região.
Apesar de haver uma expansão da colheita mecanizada nas fazendas de algodão de Xinjiang, principalmente nos grandes campos da XPCC, há relatórios chineses indicando que ainda há uma grande necessidade de mão-de-obra para atividades como remoção de ervas daninhas nas lavouras, entre outras atividades manuais.
Reportagens internacionais permitiram identificar indícios de trabalhos forçados na região. Minorias étnicas, como os uigures, tibetanos e cazaques, são alvos de um programa do governo central chinês que visa diminuir a pobreza no país e reduzir a ameaça do separatismo em regiões do oeste da China. Ao transformar essas minorias em trabalhadores que seguem os valores do governo comunista, a China consegue “resolver” esses dois “problemas”.
Com essas metas em mente, as autoridades chinesas abordam as minorias, oferecendo trabalho a elas, majoritariamente em fábricas, mas também há relatos de que algumas são enviadas para trabalhar em campos de algodão. Quando a proposta é rejeitada, a pressão dos funcionários do regime aumenta. Esses programas têm cotas para serem cumpridas e as famílias que recusarem o trabalho podem ser penalizadas por autoridades locais. As pessoas que acabam cedendo, antes de serem direcionadas para o novo emprego, passam por cursos de capacitação e doutrinação.
“O principal objetivo do programa de redução da pobreza é colocar as minorias étnicas no trabalho fabril, não na produção agrícola. Há, no entanto, o risco de trabalho forçado na produção e descaroçamento de algodão de Xinjiang, que é impossível avaliar completamente hoje devido à falta de acesso livre à região”, notou um estudo do think tank americano CSIS.
O governo chinês nega esse esforço de controlar as minorias étnicas no país e acusa o Ocidente de promover uma campanha de difamação contra a China para minar a segurança e estabilidade da região. A divisão da Better Cotton Iniciative no país se distanciou da declaração feita pela sede, em Genebra, afirmando que não encontrou nenhuma evidência de que trabalho forçado esteja ocorrendo nos campos de algodão de Xinjiang.
Em uma reportagem transmitida por uma emissora estatal chinesa na semana passada, Wu Yan, chefe do BCI em Xangai, disse que a organização conduziu várias inspeções rigorosas e não identificou um único caso de trabalho forçado.