Uma batalha sangrenta estava se desenhando no noroeste da Síria quando Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan concordaram em criar uma zona desmilitarizada na província de Idlib, último reduto dos rebeldes anti-Assad. Reunidos em Sochi nesta segunda-feira (17), os presidentes da Rússia e da Turquia definiram uma zona-tampão de cerca de 15 a 20 quilômetros na extensão da fronteira da província de Idlib, a qual será patrulhada pelas forças russas e turcas a partir de 15 de outubro.
Segundo Putin, armas pesadas e terroristas serão retirados da região, incluindo tanques e sistemas de mísseis, além de canhões de morteiros dos grupos terroristas.
A decisão foi apoiada pelo regime sírio, que salientou ter sido consultado diversas vezes pela Rússia antes do encontro com a Turquia. Agora, qualquer incursão do regime sírio em Idlib para tentar acabar com os rebeldes está em modo de espera, já que Assad não vai agir sem a permissão de Putin, seu principal aliado.
Porém, observadores internacionais apontaram a falta de garantias de que os milhares de jihadistas e rebeldes obedecerão o acordo bilateral, deixando a área delimitada. A Turquia, que apoia rebeldes anti-Assad no nordeste da Síria e domina uma porção do território nessa região, já havia feito promessas de atacar os extremistas, mas que resultaram em nada.
Nas últimas semanas, o regime sírio vinha planejando uma ofensiva violenta contra os rebeldes em Idlib, no que seria a última batalha da guerra civil, considerada pela Rússia e por Assad como necessária para estabilizar o país. Aparentemente os dois aliados estavam ignorando que a região havia sido demarcada como zona de desescalada ainda em julho do ano passado devido ao grande número de civis moram lá.
A ONU (Organização das Nações Unidas) alertou, no início deste mês, que cerca de 3 milhões de civis vivem na província e arredores que ainda estão sob o poder dos rebeldes. Muitas dessas pessoas fugiram de outras regiões da Síria durante fases anteriores da guerra. De acordo com a organização humanitária Reach, 36% da população que vive lá são deslocados internos. O número aumentou significativamente depois que o exército sírio lançou ataques aéreos em Guta Oriental, em fevereiro deste ano, matando mais de 400 pessoas.
O que pesa contra o argumento de Rússia e Síria para um ataque em Idlib é a presença de grupos extremistas em meio à população civil. O maior deles é o Tahrir al-Sham, facção jihadista conhecida como Al Qaeda na Síria, que, segundo a ONU, possui cerca de 10 mil combatentes.
O professor de política internacional do Clio, Tanguy Baghdadi, explica que conforme as forças do regime foram reconquistando território, os grupos radicais migraram para a província de Idlib. “A Al Qaeda está sediada na região de Idlib porque seus combatentes já foram expulsos de todo o território sírio. Então, acabar com a Al Qaeda em Idlib é acabar com a Al Qaeda na Síria”.
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Segundo o Soufan Center, um think tank especializado em questões de segurança e baseado em Nova York, confrontar esse número de combatentes armados requer um esforço militar massivo, mas uma batalha nas condições que se apresentavam há apenas uma semana provavelmente mataria mais civis do que extremistas violentos, o que poderia levar a um ciclo no qual os terroristas explorariam as queixas que inevitavelmente resultam das mortes de civis em massa para recrutar combatentes.
“Matar uma porcentagem considerável dos terroristas que estão hoje em Idlib não justificaria a morte de tantos civis”, analisa o Soufan Center.
No início de setembro, o secretário-geral da ONU, António Gutierrez, havia dito que um ataque intensivo das forças sírias em Idlib poderia causar “um banho de sangue” e “a pior catástrofe humanitária” deste século. O presidente turco também vinha alertando para uma “catástrofe iminente”.
Em 7 de setembro, ele se reuniu com Putin e com o presidente iraniano Hassan Rouhani, ambos aliados de Assad, para discutir um cessar-fogo na Síria, mas saiu do encontro de mãos abanando. A Rússia rejeitou a proposta de trégua em Idlib alegando que os três países não poderiam responder pela Síria ou pelos grupos rebeldes. Naquela ocasião eles assinaram uma declaração conjunta em que concordaram em cooperar na eliminação do Estado Islâmico e grupos ligados à Al Qaeda.
A criação de uma zona-tampão em Idlib, em teoria, deve dar a milhões de civis um lugar para se refugiar, em vez de forçá-los a buscar asilo na Turquia. Este é, na verdade, um dos principais temores de Erdogan e motivo pelo qual ele busca uma trégua na guerra da Síria. A Turquia já abriga mais de três milhões de refugiados sírios e está enfrentando uma grave crise econômica.
Porém, é apenas um adiamento do conflito, segundo observadores da política internacional.
O acidente que matou 15 russos
A Síria é uma arena de conflito de interesses que envolve Rússia, Irã, Turquia, Estados Unidos, Israel, curdos, além do próprio governo sírio. A atividade militar das várias forças no país é tão intensa que erros e enganos podem ocorrer eventualmente, como o abate de um avião russo nesta semana.
Na segunda-feira (17), o sistema de defesa antiaéreo da Síria derrubou um avião de reconhecimento russo sobre o Mar Mediterrâneo, a alguns quilômetros de Latakia. Os sírios estavam atacando quatro caças israelenses que haviam acabado de atingir um centro militar da Síria, quando atingiram o avião russo, matando 15 pessoas. O porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia imediatamente culpou Israel pelo ataque, afirmando que o exército israelense tinha deliberadamente criado uma situação perigosa, mas horas depois, Putin apareceu para colocar panos quentes sobre o caso, moderando o tom e alegando que considerava o abate da aeronave um acidente.
Desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, Israel tem realizado ataques aéreos regulares em posições iranianas e do Hezbollah na Síria. As Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) afirmaram recentemente que atingiram mais de 200 alvos iranianos dentro da Síria nos últimos 18 meses.
Segundo o Soufan Center, para evitar acidentes com as forças militares russas, que estão servindo como força aérea de Assad no conflito, israelenses mantêm uma linha de comunicação com os russos. Rússia e Israel têm relações relativamente boas e nenhum dos lados quer que um erro como esse leve a uma dinâmica de escalada do conflito que pode sair ainda mais do controle.
O que cada envolvido está buscando
A guerra da Síria está em seu capítulo final e este longo conflito reformulou as alianças no Oriente Médio ao longo dos últimos sete anos. Segundo Baghdadi, todos querem o fim do conflito, mas o momento e como isso se dará está longe de ser consenso. Para a Síria, só interessa o fim da guerra quando os rebeldes forem totalmente suprimidos.
O ditador Bashar al-Assad, que quer consolidar o controle sobre o que restou de seu país, até gostaria de evitar uma batalha sangrenta que causaria ainda mais estragos à sua imagem, mas os grupos rebeldes filiados à Al Qaeda não dão sinais de rendição.
A Arábia Saudita e a Turquia gostariam que a guerra terminasse com as atuais configurações do tabuleiro, criando mais estabilidade na região, mas ao mesmo tempo mantendo alguns focos de resistência ao regime Assad. São esses atores os que mais têm a ganhar com a criação de uma zona desmilitarizada, de acordo com Baghdadi.
O Irã quer expandir os laços militares com Assad e evitar qualquer esforço da Rússia para minimizar sua influência com seu governo, ou seja, quer auxiliar o regime sírio a exterminar os rebeldes de seu território. Fazendo isso, o país ganha mais influência na Síria, se consolida como uma potência regional e ganha alcance em uma região próxima a Israel, seu inimigo histórico, com quem entrou em conflito direto pela primeira vez na história em maio deste ano, nas colinas de Golan.
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O papel da Rússia é o mais relevante e complexo. Ela cedeu a uma trégua temporária, mas provavelmente pedirá algo em troca - mais um exemplo de sua atuação fluida durante a guerra. “A Rússia se coloca como um adulto responsável que controla a agressividade das forças sírias e iranianas contra os rebeldes”, exemplifica Baghdadi.
Putin quer solidificar a posição de seu país como a potência externa superior na Síria. Como Assad, a Rússia preferiria evitar um banho de sangue civil que alienaria ainda mais a Europa e dificultaria a arrecadação de fundos para a reconstrução. No entanto, ainda não há sinais de que ações ameaçadoras possam forçar a rendição de forças rebeldes e jihadistas.
Mas a Rússia também tem interesses comerciais, visando a reconstrução do território sírio e a manutenção da dependência energética da Europa em relação ao petróleo e derivados extraídos na Rússia. Atualmente 39% das importações de óleo cru e de gás natural feitas pela União Europeia vem de Rússia, Azerbaijão e Cazaquistão. Catar e da Turquia haviam proposto a construção de um gasoduto para fornecer esses recursos à Europa, diminuindo assim a dependência em relação à Rússia, mas o duto passava pela Síria e Assad acabou vetando o projeto. Tudo isso leva a crer que, mesmo com o fim da guerra civil, a Síria continuará sendo um campo de batalha de interesses geopolíticos.