A vida em Porto Príncipe tem sido muito diferente nas últimas duas semanas. Tarefas banais, como ir ao supermercado, se tornaram desafios perigosos na capital do Haiti.
“Todo mundo fica apenas em casa. Comércios, escolas, serviços públicos não estão funcionando. Algumas lojas e mercados tentaram abrir as portas, mas o risco não compensava”, relatou uma moradora da região metropolitana de Porto Príncipe em entrevista à Gazeta do Povo. “O que ainda deve estar funcionando são os hospitais, mas já ouvimos dizer que a situação deles é precária, pela falta de suprimentos”, acrescentou o marido dela. Ambos não quiseram ser identificados nesta reportagem por questões de segurança.
Desde que protestos massivos irromperam no Haiti, em 7 de fevereiro, a população tem sido orientada a ficar em casa. “As rádios avisam: um levante vai ocorrer em determinado ponto. Se você não quer participar, evite sair de casa”, lembrou a jovem.
O motivo de preocupação é evidente: pelo menos sete pessoas morreram e 14 ficaram feridas durante as manifestações que pedem a saída do presidente Jovenel Moise.
A embaixada brasileira em Porto Príncipe emitiu um aviso de segurança aos brasileiros que vivem no Haiti na quinta-feira (14), aconselhando-os a garantir acesso a comida, água, e outro mantimentos essenciais para, pelo menos, uma semana; evitar sair, a todo custo, durante manifestações; manter a calma e procurar informações confiáveis em caso de protestos violentos; e deixar celulares carregados todo o tempo, mantendo familiares e amigos informados sobre a atual condição.
No mesmo dia, o Departamento de Estado dos Estados Unidos ordenou que todos os funcionários americanos não envolvidos em ações emergenciais e seus familiares saíssem do país devido aos distúrbios contínuos. O governo americano citou os riscos causados por queima de pneus, bloqueios de ruas e crimes violentos, inclusive roubos a mão armada.
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A violência parte da indignação da população com casos de corrupção envolvendo atuais e ex-governantes, enquanto milhares de haitianos não têm nada para comer.
“O que estamos enfrentando hoje é por causa de Jovenel [Moise]... eles estão com fome", disse em entrevista ao The Guardian um vendedor cujo estoque de peixes foi completamente roubado por saqueadores durante uma manifestação recente. “Não temos bons líderes: se houvesse trabalho no país, isso nunca teria acontecido”.
O jovem casal que conversou com a Gazeta do Povo concorda. “O povo haitiano não é violento, é a fome que torna as pessoas violentas”, disseram.
Protestos não são novidade no país que ainda sofre as consequências do devastador terremoto de 2010, de outros desastres naturais, de ditaduras e da exploração estrangeira. No ano passado, cenas semelhantes se repetiram diversas vezes, como em julho de 2018, quando os haitianos saíram às ruas para protestar contra o aumento do preço da gasolina - que foi suspenso temporariamente pelo governo. Ou como em novembro do ano passado, quando seis pessoas morreram em manifestações contra suspeitas de corrupção envolvendo o governo.
“O que diferencia os protestos de agora, é que eles estão demorando para terminar e há falta de informações e notícias confiáveis sobre a situação. Não há clareza sobre o que está acontecendo”, disse a moradora de Porto Príncipe.
O que exatamente está acontecendo lá?
Manifestações contra políticas econômicas e suspeitas de corrupção, que vinham ocorrendo pacificamente havia meses, eclodiram em protestos violentos em 7 de fevereiro, data que marca o fim da ditadura da família Duvalier, que governou o país de 1957 até 1986. Marchas que pedem a renúncia do presidente Moise estão acontecendo em vários pontos do país, mas as maiores mobilizações e confrontos ocorrem em Porto Príncipe.
As ruas da capital estão praticamente vazias, comércio e escolas fecharam as portas por causa da violência. Foram relatados casos de sequestros, roubos e uma fuga de 78 detentos de uma prisão na cidade de Aquin, que aproveitaram a distração da polícia com protestos locais para escapar. No bairro abastado de Porto Príncipe, a casa do presidente Moise chegou a ser apedrejada e a rua que dá acesso a ela, bloqueada.
Pelo menos sete pessoas morreram e 14 policiais ficaram feridos, segundo informou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) com base em reportagens da imprensa local. O órgão pediu a investigação destas mortes, que à primeira vista parecem ter sido resultado da resposta da polícia às manifestações.
Nesta quarta-feira (13), um manifestante foi morto e um jornalista foi ferido em um ponto de protesto perto do complexo presidencial. A poucos metros dali, confrontos entre jovens e forças de segurança foram intensos, com lançamento de pedras e bombas de gás lacrimogêneo entre eles, de acordo com um repórter da AFP que estava no local.
Segundo análise do antropólogo Greg Beckett, que estuda o Haiti e é professor no Departamento de Antropologia da Western University (EUA), no geral os protestos têm sido notavelmente pacíficos, especialmente devido ao nível de frustração que as pessoas sentem pelo atual governo e pela situação econômica e política.
O que está motivando os protestos?
Vários fatores desencadearam a maior onda de protestos na história recente do Haiti, a começar pela desconfiança com o governo de Moise. Muitas pessoas acreditam que as eleições que deram vitória a ele, em novembro de 2016, foram fraudulentas.
Soma-se a isso um escândalo de corrupção que revelou o desvio de bilhões de dólares de um fundo de programas sociais ligado à Aliança Petrocaribe por membros do atual governo e antecessores – que apoiaram a candidatura de Moise.
Beckett lembrou que em janeiro deste ano, quando o governo haitiano encerrou sua participação na aliança de petróleo com a Venezuela, a Petrocaribe, houve escassez generalizada de combustíveis e apagões em todo o país.
“As pessoas estão insatisfeitas com o que chamam de ‘alto custo de vida’, os preços dos combustíveis e outros problemas fazem parte disso. Mas os atuais protestos também vêm na esteira de um escândalo de corrupção. Eles se diferem dos protestos anteriores porque são mais claramente enquadrados como um protesto político contra o governo”, explicou Beckett.
Por outro lado, nesta sexta-feira, Moise declarou enfaticamente que não vai deixar a presidência. “Não deixarei o país nas mãos de gangues armadas e traficantes de drogas”, disse, referindo-se a autoridades de governo que, segundo ele, foram às ruas com "chefes de gangues procurados pela lei". Em um discurso televisionado, ele pediu diálogo com a oposição.
O que se sabe sobre o escândalo de corrupção com o dinheiro do Petrocaribe?
Uma auditoria divulgada no final de janeiro pelo Tribunal Superior de Contas e Conflitos Administrativos do Haiti confirmou as reivindicações iniciais de um relatório do Senado haitiano de 2017, o qual alegava que US$ 1,7 bilhão do fundo Petrocaribe havia sido perdido ou roubado e que o programa havia acumulado US$2 bilhões em dívidas.
A auditoria também confirmou que muitos dos projetos de desenvolvimento patrocinados com recursos da Petrocaribe nunca foram concluídos ou nunca existiram. Membros dos governos atual e passado foram implicados no escândalo da corrupção. Uma das beneficiadas teria sido uma empresa ligada ao próprio presidente Moise.
O Petrocaribe é uma aliança que a Venezuela mantinha com alguns países caribenhos. Foi lançada em junho de 2005 pelo então presidente venezuelano Hugo Chávez, permitindo que estes países comprassem até 185 mil barris de petróleo por dia.
Sob a parceria, o Haiti comprava petróleo venezuelano a uma porcentagem do valor de mercado (entre 40 e 70%). O restante era pago por empréstimo, com juro de 1% ao ano, em até 25 anos.
Segundo lembrou Beckett, o plano também estipulava que parte dos lucros da venda de produtos petrolíferos no Haiti, conduzida pelo governo haitiano, seria destinada a um fundo para programas de desenvolvimento social. “O escândalo da corrupção envolve esses fundos internos no Haiti, bem como a estruturação geral da dívida como parte do plano”, explicou o professor, afirmando que, no momento, não há indícios de que o regime chavista esteja envolvido nas acusações de corrupção.
Sob pressão dos EUA e de outros apoiadores internacionais, o governo de Moise retirou seu respaldo ao ditador Nicolás Maduro, e agora se junta ao movimento internacional para reconhecer Juan Guaidó como presidente da Venezuela.
E quanto ao fator econômico?
Em 6 de fevereiro, Moise declarou emergência econômica no país, um ato que tinha o objetivo de reduzir o nível de funcionamento do governo para cortar despesas.
De acordo com Beckett, isso permitiu que eles lançassem rapidamente uma série de regulações sobre como os funcionários do governo podem usar bens públicos, especialmente veículos de propriedade do governo, estipulando, por exemplo, que não podem usá-los para fins pessoais ou depois de determinadas horas.
Também possibilitou que o governo garantisse fundos para pagar importações de combustíveis. Durante a maior parte de janeiro, o país não conseguiu importar combustível porque tinha dívidas pendentes com seu fornecedor de petróleo, a empresa americana Novum. O combustível chegou ao país, mas há relatos de que os protestos e as barricadas dificultam a distribuição.
No Haiti quase toda a energia gerada depende do petróleo. Os preços dos combustíveis têm sido subsidiados pelo governo desde 1995, mas a administração atual assinou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) em fevereiro de 2018 que, entre outras coisas, requer o fim desses subsídios.
O alto custo de bens e serviços básicos também é um fator nos protestos. A inflação, atualmente em torno de 13% ao ano, está crescendo de forma acelerada. “Tudo aqui é tabelado pelo dólar americano. Temos medo de que, quando tudo isso acabar e os mercados reabrirem, os preços tenham aumentado muito”, disse a moradora de Porto Príncipe.
O Haiti é o país mais pobre da América. 59% de sua população vive com menos de US$ 2,41 por dia e 24% está em condição de pobreza extrema, vivendo com menos de US$1,23 por dia, segundo o Banco Mundial.
Qual o papel da oposição nos protestos?
Os atos anticorrupção começaram a ser convocados pela oposição, mas ninguém está se apresentando como líder. Devido a esta situação, se Moise deixar o poder como pedem os manifestantes, não está claro quem comandará um governo interino. Se houvesse um acordo mediado de compartilhamento de poder, também não está claro quem estaria envolvido nisso.
Como tem sido a presidência de Moise?
Até poucos anos atrás, Moise era um desconhecido na política. Não havia ocupado cargos públicos, era um homem de negócios quando foi lançado como candidato do partido governista nas eleições de 2015. Naquele ano, porém, o pleito foi anulado por suspeita de fraude. Uma nova eleição ocorreu somente em novembro de 2016, na qual Moise conseguiu a maioria dos votos. Neste intervalo de tempo, o presidente do Senado Jocelerme Privert assumiu o governo do Haiti. As suspeitas de fraude nas eleições de 2015 pesaram na popularidade de Moise.
Uma de suas principais promessas quando ainda era candidato foi a de acabar com a corrupção e garantir o fornecimento estável de energia elétrica. Agora, Moise se vê envolvido em um escândalo de corrupção enquanto o país enfrenta apagões de rotina e altos gastos com energia.
“Ele é visto como uma continuação de Michel Martelly, cujo partido PHTK (Parti Haitian Tèt Kale) tem a maioria das cadeiras no legislativo. Ele também é visto como uma figura de direita e como alguém ligado à elite haitiana”, afirma Beckett.
O que pode ocorrer a partir de agora?
Moise parece determinado a continuar no poder. Mas o professor Beckett alerta que, caso as manifestações continuem, essa determinação tende a se transformar em uma resposta forte e provavelmente violenta aos protestos por parte do governo.
“Usando a história haitiana como guia, acho que os cenários prováveis são que ele (Moise) negocie um acordo para deixar o país - talvez para garantir que ele escape de quaisquer outras implicações ou acusações de corrupção - ou que a OEA (Organização dos Estados Americanos) ou outras organizações internacionais patrocinem um acordo de compartilhamento de poder”, observa o antropólogo.
Se os protestos continuarem a bloquear o país, a comunidade internacional, trabalhando através da missão da ONU que está no país, pode tentar forçá-lo a sair e nomear um governo provisório. “Neste ponto, porém, parece haver pouco apoio entre a comunidade internacional para qualquer mudança imediata no governo”, acrescentou Beckett.