Um dos sintomas mais cruéis e misteriosos do HIV, o vírus da Aids, foi desvendado por cientistas do Estados Unidos em um estudo publicado nesta semana. A equipe descobriu que a demência observada em pacientes que têm a doença há muito tempo é causada por um truque sujo do vírus, que usa uma defesa anticâncer do cérebro contra ele mesmo. O golpe é duplo: ao mesmo tempo em que ele mata células cerebrais, impede a formação de novos neurônios. Fere e impede a regeneração em uma tacada só.
A chamada "demência associada ao HIV" é um dos sintomas mais dramáticos da doença. Quando o paciente já está nos estágios avançados da enfermidade e bastante debilitado, passa também a apresentar problemas mentais, tendo dificuldade para se concentrar e se movimentar.
Os cientistas nunca entenderam exatamente como o vírus conseguia fazer isso, porque o HIV não consegue infectar neurônios. Eles sabiam que o vírus era capaz de destruir as células neurais, mas não compreendiam porque novas células não cumpriam as funções das perdidas. Afinal, quando o cérebro funciona normalmente, ele é capaz de se regenerar através da chamada "neurogênese" -- literalmente, surgimento de neurônios. Esse trabalho é feito pelas chamadas células progenitoras neurais adultas -- uma espécie de "célula-tronco" do cérebro, que se transforma em neurônios novos quando há necessidade.
Agora, a equipe do Instituto Burnham para Pesquisas Médicas, nos Estados Unidos, desvendou o mistério: o vírus da Aids não só mata os neurônios como impede o trabalho das células progenitoras. A responsável por isso é uma proteína que age em conjunto com o ele, a HIV/gp120. Em testes em laboratório, os cientistas confirmaram que é ela quem impede a proliferação das células-tronco do cérebro.
Golpe baixo
Como? Com um truque para lá de sujo. A proteína ativa o trabalho de uma enzima, que originalmente tem a função de nos proteger do câncer. Tumores são células que se proliferam demais. Para evitar isso, a enzima p38 MAPK pára a multiplicação celular quando há risco. A proteína do HIV engana o organismo, faz ele acreditar que há uma ameaça de câncer, ativa a enzima e deixa o paciente completamente debilitado. Essa estratégia fez um dos autores do estudo, Shu-ichi Okamoto, desabafar: "como é esperto o HIV!".
A descoberta mostra que será preciso desenvolver novos remédios para combater o problema. Os medicamentos usados atualmente para controlar a Aids não alcançam o cérebro com eficiência. "O cérebro é normalmente separado do resto do organismo por um porteiro, chamado de barreira cérebro-sangue, que protege os tecidos cerebrais de substâncias perigosas que estão na nossa corrente sangüínea. Essa barreira protetora traz uma desvantagem: muitos remédios não conseguem passar por ela. Ou achamos novas drogas ou achamos novas maneiras de ultrapassar essa barreira para levar remédios que já temos e que funcionam bem no resto do organismo", disse um dos líderes do estudo, Marcus Kaul.
De acordo com outro líder do trabalho, Stuart Lipton, remédios que já estão sendo estudados podem ajudar. "Drogas que inibem a ação dessa enzima estão em desenvolvimento para tratamentos de outras doenças, como, por exemplo, a artrite", disse ele.
Segundo os cientistas, a descoberta pode ajudar também na luta contra doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. "Nossos resultados podem ser generalizados para qualquer tipo de demência. Em todas elas, incluindo o Alzheimer, as células-tronco do cérebro são danificadas", diz Okamoto.
Por fim, os resultados, publicados na edição desta semana da revista científica "Cell Stem Cell", mostram que o HIV continua tão fatal e incurável como sempre foi. Apesar de muitos acreditarem, devido aos avanços da medicina, que é possível se conviver com a Aids hoje em dia sem maiores problemas, a doença continua devastadora. Enquanto a vacina não vem, é de vital importância não se descuidar da prevenção.