A coisa mais difícil para um comunista, como já foi observado, é prever o passado. Lembrei-me disso na Conferência de Segurança de Munique ao ouvir o ministro russo de Relações Exteriores, Sergei Lavrov, de um modo completamente soviético, sugerindo que, após a Segunda Guerra Mundial, "a União Soviética foi contra a divisão da Alemanha".
Todos riram; gargalharam. Os alemães se lembram do controle soviético no leste do país e no muro de Berlim. Porém, de certa forma, Lavrov estava certo: a União Soviética teria ficado bem feliz se controlasse toda a Alemanha, caso tivesse a oportunidade. Hoje, do mesmo modo, a Rússia do presidente Vladimir Putin ficaria feliz se controlasse toda a Ucrânia, que considera uma extensão de sua pátria, mas que foi iludida pelo Ocidente a se ver como um Estado independente.
O desempenho do Lavrov aqui reflete o universo alternativo em que a nave espacial russa está ancorada, quase um quarto de século após o colapso da União Soviética.
A anexação da Crimeia pela Rússia foi, ele insistiu, uma revolta popular, o povo que "exigiu o direito à autodeterminação" conforme a Carta das Nações Unidas. Os ucranianos se envolveram em uma orgia de "violência nacionalista" caracterizada por limpezas étnicas contra judeus e russos. Os Estados Unidos foram guiados por um desejo insaciável de domínio global e, na Ucrânia, haviam orquestrado um "coup d'état" no ano passado que levou à deposição do Presidente Viktor Yanukovych. A Europa pós-1989 havia virado as costas à construção da "casa comum europeia", diminuído a perspectiva de uma "zona econômica livre", desde Lisboa até Vladivostok, em favor da expansão da OTAN rumo ao leste até os portões da mãe Rússia.
Vai sonhando, Sergei.
Na verdade, a anexação russa da Crimeia acabou na marra com o significado de "integridade territorial" e "independência política" da Ucrânia, em uma clara violação do artigo 2 da Carta das Nações Unidas. Também acabou com o compromisso formal da Rússia no Memorando de Budapeste, de 1994, de respeitar as fronteiras internacionais da Ucrânia. A "violência nacionalista" que mais uma vez levantou questões de guerra e paz na Europa não vem de Kiev, mas de Moscou, onde Putin tem cultivado uma fábula absurda de cerco, humilhação e depredação ocidental para gerar histeria e justificar a agressão russa no Leste da Ucrânia.
Da mesma forma, o fascismo que Lavrov tenta localizar na Ucrânia, através de alusões aos ataques contra judeus e outros grupos étnicos, na verdade pode ser muito mais facilmente identificado em casa. Putin lembrou à humanidade que a frase "o fascismo precisa ser respeitado" é na verdade tão grotesca que beira a irracionalidade. O líder russo foi quem melhor invocou a história para transformá-la em farsa. E persiste no absurdo de que todas as forças russas e seu arsenal no Leste da Ucrânia são fruto da imaginação mundial.
O "golpe" na Ucrânia de Lavrov não foi assim: foi uma revolta popular contra um fantoche russo corrupto coagido a afastar seu país de uma associação mais estreita com o Ocidente. Os ucranianos achavam que o fascínio de Varsóvia ou Berlim era maior que o da ensolarada Minsk. Quando ouvem "casa comum europeia" traduzem por "império soviético".
Dois mais dois são cinco era um slogan soviético. Foi adotado em 1931 para apoiar a noção de que o plano de cinco anos de Stálin poderia ser concluído em quatro. Dois mais dois são cinco ainda é a "verdade" que emana de Moscou. Vale a pena recordar desse detalhe em todas as negociações sobre a Ucrânia. Muito se falou aqui sobre um possível cessar-fogo engendrado pela dupla França e Alemanha; sobre não haver uma "solução militar" para o conflito ucraniano; sobre se seria prudente o Ocidente enviar armas para apoiar o governo ucraniano (a chanceler Angela Merkel se opôs); e sobre a necessidade de ser firme, pelo menos em discurso.
Está na hora de cair na real com relação a Putin. Ele não instalou tanques e sistemas de lançamento de foguetes na fronteira ucraniana porque não vai se contentar com nada menos do que uma Ucrânia enfraquecida, minada pelo conflito na região de Donetsk, um país com seu próprio enclave pró-Rússia, à la Abkhazia ou Transnístria, firmemente sob a influência russa: o símbolo de sua estratégica definitiva se afasta do Ocidente e se volta para o confronto que o sustenta agora que o preço do petróleo e a moeda despencaram. Ele não vai deixar a Ucrânia em paz.
Há uma linguagem que Moscou entende: mísseis antitanque, radares, drones de reconhecimento. Reforçar o exército ucraniano com essas e outras armas. Alterar a análise de custo-benefício de Putin. Há riscos, mas nenhuma política é isenta de riscos. Lembrar que a Ucrânia abriu mão de mais de 1.800 ogivas nucleares em 1994 em troca desse compromisso falso da Rússia de respeitar sua soberania e suas fronteiras. Certamente ela conquistou o direito a algo além de óculos de visão noturna. A atual diplomacia ocidental com relação à Ucrânia tem ilusão demais e realismo de menos. Dois mais dois são quatro, na guerra e na paz.