“Estamos indo contra convenções internacionais. Mas os outros países não são ‘bonzinhos’ com imigrantes também. O problema é que a Itália fala do que ‘será feito’, e depois na realidade nem faz. Não faz tanto mais do que acontece em outros países.”| Foto: Helena Carnieri/Gazeta do Povo

Depoimento

Helena Carnieri, repórter da editoria Mundo da Gazeta do Povo

Controle na fronteira

O transporte público italiano está tomado por estrangeiros. Não são turistas indo em massa a Veneza, e sim romenos, turcos, marroquinos e albaneses, indo e voltando do trabalho. Alguns vivem há 30 anos no Bel Paese.

Ao contrário do que fazem pensar as fotos de barcos abarrotados de nigerianos aportando na ilha de Lampedusa, a maioria dos estrangeiros entra no país legalmente e vai ficando depois de vencido o visto.

O único lugar onde enfrentam controle policial, na prática, é na fronteira. E eles não resistem a uma voltinha para visitar os amigos na Alemanha... Só que, depois, precisam enfrentar a viagem de volta, que está cada vez mais complicada.

O mais conveniente é o trem noturno, que faz a viagem direta, por exemplo, de Bonn a Milão. Também no trem internacional a maior parte dos passageiros é estrangeira. Em outubro, lá estava eu, que insisto em fazer esse trajeto de noite, quando é mais barato.

Na calada da noite, o show começa. Os trilhos são pressionados pelo freio e o trem para em Como, na fronteira entre Suíça e Itália. Demora. Muito tempo depois, quando você já dormiu de novo, a luz da cabine é acesa abruptamente e um homem fardado informa: "Controle!" Rápido, o passaporte. Não é bom dar motivo para desconfiança.

Eu estava escaldada. Precisei abrir a mala enorme de turista no meio do corredor em outra ocasião. (Devo ter chamado muita atenção por ser "brasileira e branca!", como os italianos não me deixam esquecer, e estar numa cabine dormitório recheada de nigerianos.)

Mesmo sem ter o que esconder, o coração dispara. Preparada, havia montado uma personagem. Jornalista internacional Helena. Roupa preta, colar de pérolas (falso), jornal em inglês aberto (de madrugada??) e a infalível carteirinha de jornalista (em português) grudada na capa do passaporte. Se não estivesse de lentes, colocaria os óculos.

Deu certo. A turca com quem dividia a cabine é que precisou dar explicações nas quatro vezes em que os oficiais escancararam nossa cortininha. Há dez anos, a polícia vinha uma ou duas vezes e era tratada quase como um fornecedor de souvenirs para o passaporte, cheio de carimbos.

Agora, não. Dobraram o controle e trouxeram até um cão farejador para as malas. Só não pediram à jornalista Helena que baixasse seus 30 quilos de bagagem. Não iriam interromper a leitura.

CARREGANDO :)
CARREGANDO :)

Monica Russo, colaboradora da cátedra de Antropologia da Imigração da Universidade de Bolonha.O ano passado ficou marcado entre imigrantes que vivem na Europa como o ano da radicalização. Foi quando o bloco unificou sua política de deportações por meio de pacote que ficou co­­nhe­­ci­­do como "Diretiva da Ver­­go­­nha". Mas foi em 2009 que as "leis bizarras" surgiram, especialmente na Itália, com destaque para uma suposta obrigatoriedade a funcionários públicos, in­­cluindo médicos, de denunciar clandestinos a quem viessem a prestar serviço.Pois bem, a obrigatoriedade não foi incluída nas novas leis italianas de imigração, mas ficou o medo passado no noticiário. Nin­­guém sabe como agir. Para a pesquisadora da Univer­­sidade de Bo­­lonha Monica Russo, o clima anti-imigrantes permeia a sociedade italiana desde que se tornou cavalo de batalha político, motivo de embate entre a direita do premier Berlusconi e a oposição. Sai­­ba como essa transformação ocorreu na entrevista concedida, em sua casa, à Gazeta do Povo:O que contribui para o crescimento do sentimento anti-imigratório na sociedade italiana?

Na Itália não temos uma longa história de imigração, porque so­­mos um país de emigração. Por isso a primeira manifestação imigratória não foi tão contestada, quando chegaram muitas pessoas por motivos políticos nos anos 70. Bolonha (centro comunista) foi uma cidade que acolheu muitos eritreus e argentinos que fugiam de regime ditatoriais, e essa imigração foi apoiada pela sociedade. Mas nos anos 80 e 90 aumenta o fenômeno migratório econômico e muda muito o mercado de trabalho, que se torna mais instável. A chegada de uma mão de obra mais barata traz desencontros. O estrangeiro é identificado como alguém que abaixa o padrão do mercado de trabalho, aceita condições piores. Hoje, a imigração é malvista e também um cavalo de batalha político.

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Qual o contexto político?

A direita cresce na Europa, e na Itália a direita social, com um discurso racista mas de apoio aos italianos pobres. Só que no tema das cuidadoras de idosos ninguém toca, porque elas são úteis. E co­­meça um discurso de acolher só quem for necessário, porque "nós não fazemos esse trabalho". A mídia também é culpada dessa estigmatização de ligar o estrangeiro à criminalidade.

Existe essa ligação?

Com a chegada de mais estrangeiros cresce quantitativamente o número de criminosos, que cometem alguns microcrimes. Mas é paradoxal, porque é obvio que a maior parte dos crimes é de furtos. Se os problemas maiores desse país fossem os furtos...

As leis que criminalizam os clandestinos vão resolver o problema?

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O pacchetto sicurezza (pacote de segurança) é algo maior, inclui retenção e aumento de pena para alguns crimes. É algo com vestes de importância que, na verdade, não resolve. O drama é que ele arrisca piorar a situação.

Por exemplo, com a a obrigatoriedade da denúncia?

Ela foi lançada (no início deste ano) como universal: qualquer funcionário público que encontrasse um irregular teria o dever de denunciar. Na verdade, foi apenas uma campanha, que não en­­trou no pacote segurança. O problema é que passou a mensagem de medo. Isso trouxe um alarme, um terror entre a população imigrante, que passou a pensar duas vezes antes de ir ao hospital por uma emergência.

A procura por hospitais caiu mesmo?

As pessoas ficaram com medo, e então alguns hospitais começaram a colocar cartazes dizendo "Nós não denunciamos".

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Como os funcionários públicos reagiram?

No início ninguém entendia se devia denunciar ou não. Depois, entenderam que não havia uma obrigatoriedade, e que, ainda que se dissesse que havia, não havia a lei. Os diretores de escola não sa­­biam o que fazer, porque uma cri­­ança filha de irregulares deve pela lei ser inscrita na escola. Mas se os pais têm obrigação de matriculá-los, e os professores de de­­nunciar, vira uma situação absurda! E como está o mercado de trabalho para esses imigrantes? O trabalho mais fácil de encontrar na Itália é o de cuidador de idoso?

Sim, especialmente para mulheres que vêm sozinhas. Elas chegam e não falam nada de italiano, têm uma certa idade, o mais fácil é buscar o trabalho doméstico pa­­ra não precisar procurar uma ca­­sa. Mas depende de onde a mulher vem. O Leste Europeu é o setor mais forte no trabalho doméstico, principalmente a Ucrânia, ao me­­nos no norte da Itália.

Por que o Leste Europeu?

Elas foram popularizadas no imaginário coletivo como uma "mu­­lher-mãe", capaz de cuidar dos idosos, que se sacrifica e é confiável. As redes informais de colocação funcionam assim.

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E quais são rejeitadas?

O discurso contrário é voltado a mulheres africanas da região do Magrebe. As islâmicas são olhadas com suspeita porque o trabalho de cuidador de idoso requer um contato íntimo, e as famílias têm medo que a mulher de origem islâmica não preste atenção à limpeza das zonas íntimas por não poder tocar o homem.

Isso é verdade ou puro preconceito?

Criou-se um estereótipo, não quer dizer que a mulher islâmica tenha menos capacidade de cuidar do idoso. Mas as famílias não querem problemas. Digamos que uma mu­­lher islâmica tenha problemas em cozinhar porco. Nesta re­­gião (Emilia-Romanha), se você tirar a carne suína de um senhor de 70 anos estará tolhendo 60% de sua alimentação...

A recepção de africanos em barcos tem recebido muita atenção na mídia também.Houve problemas graves com postos de acolhimento na Líbia, para onde imigrantes (que chegaram à Itália) foram devolvidos, e onde mulheres foram violentadas, pessoas apanharam... Antes de mandar essas pessoas embora, é preciso ter certeza que não tenham di­­reito ao asilo político. Essa foi a posição da Comissão Europeia.

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Essa confusão prejudicou a Itália dentro da União Europeia?

A Itália está no centro de uma série de críticas. A imprensa internacional nos vê como um fenômeno curioso. Afi­­nal, estamos indo contra convenções internacionais. Mas os outros países não são "bonzinhos" com imigrantes também. O problema é que a Itália fala do que "será feito", e depois na realidade nem faz. Não faz tanto mais do que acontece em outros países.