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Crise da Venezuela

Infância interrompida: Venezuela corre o risco de perder uma geração

Menina brinca com uma pipa no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril
Menina brinca com uma pipa no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril (Foto: Andrea Hernandez / Washington Post)

Ser criança na Venezuela hoje é perigoso.

Aqui na capital, em qualquer tarde, adolescentes emaciados reviram o lixo apodrecido em busca de comida. Crianças têm sido abandonadas, entregues a familiares ou a orfanatos, por pais que não podem mais sustentá-los. Recém-nascidos foram descartados em lixeiras.

A pobreza não é novidade aqui. A distribuição de riqueza nessa nação rica em petróleo sempre foi desigual - uma razão pela qual o líder socialista Hugo Chávez subiu ao poder duas décadas atrás. Mas, depois de anos de crise humanitária na Venezuela, os sistemas governamentais que antes coordenavam os serviços para os pobres entraram em colapso e as crianças estão entre as que mais sofrem. Conheça alguns números:

Em sete dos maiores estados, mais da metade das crianças com menos de cinco anos sofrem de desnutrição, segundo a agência de ajuda humanitária Caritas Venezuela.

Estima-se que 840.000 crianças tenham perdido pelo menos um dos pais para a emigração, informa o grupo de defesa infantil Cecodap.

A frequência escolar caiu pela metade nos últimos dois anos, de acordo com a Fé e Alegria, uma rede de escolas jesuítas que atende os bairros mais pobres do país.

A mortalidade infantil aumentou para 11.466 mortes em 2016, um aumento de 30% em relação ao ano anterior, informou o Ministério da Saúde em 2017. O ministro da Saúde que publicou essa informação foi demitido dias após a divulgação; o governo não forneceu dados sobre a saúde das crianças desde então.

Além das condições que estão devastando grande parte da população da Venezuela: hiperinflação e desemprego, falta de energia e escassez de remédios, alimentos e água. As Nações Unidas estimam que 3,7 milhões de pessoas fugiram do país.

Enquanto o governo está paralisado por má administração, corrupção e impasse político, assistentes sociais, professores e defensores dizem que as crianças estão perdendo a infância para a incerteza, ansiedade e medo, que roubam delas o desenvolvimento saudável e ameaçam causar danos de longo prazo à nação.

"Temos um país quebrado que está sacrificando seu futuro", diz Abel Saraiba, psicólogo da Cecodap.

Sob o sistema centralizado de bem-estar infantil do governo, os assistentes sociais gerenciavam casos e dirigiam serviços por meio de programas escolares, tribunais de família e orfanatos. Mas essa rede de segurança está aos farrapos. Nelson Villasmil, assistente social do governo em Caracas, diz que milhares de casos estão aguardando resolução no sistema judicial há anos.

Todos os dias, diz Villasmil, ele recebe de 15 a 20 pais que lutam para descobrir o que fazer com seus filhos porque estão emigrando.

"Muitas vezes me pergunto se estou fazendo o suficiente para proteger as crianças", disse ele. "A resposta é não. Porque eu não posso. Este é o pior momento para ser uma criança na Venezuela."

O governo venezuelano não respondeu a repetidos pedidos de comentários.

Organizações sem fins lucrativos - Caritas, Fé e Alegria, Cruz Vermelha e outras - estão tentando preencher as lacunas: oferecendo refeições para crianças, ajudando os pais a dar instruções aos filhos que deixam para trás quando migram, buscando doações de venezuelanos no exterior para equipar escolas com filtros de água e suprimentos básicos.

Os orfanatos privados estão cheios, mantendo as crianças por mais tempo do que o recomendado e lutando por dinheiro para prestar serviços psicológicos às crianças de rua.

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Duas crianças saem por um buraco no muro na escola San Alberto Hurtado, em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

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Duas crianças saem por um buraco no muro na escola San Alberto Hurtado, em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

Milagros Parada, em Caracas, Venezuela, 16 de abril. Ela teve que perder aulas nesta ano porque não tinha sapatos

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Milagros Parada, em Caracas, Venezuela, 16 de abril. Ela teve que perder aulas nesta ano porque não tinha sapatos

Flor Fuentes conforta o seu filho no campo de futebol

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Flor Fuentes conforta o seu filho no campo de futebol

Menina na escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caraca, Venezuela, 16 de abril

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Menina na escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caraca, Venezuela, 16 de abril

Crianças brincam no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

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Crianças brincam no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

Menina brinca com uma pipa no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

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Menina brinca com uma pipa no pátio da escola San Alberto Hurtado em La Vega, Caracas, Venezuela, 16 de abril

Perguntas sem respostas

Milagros Parada é uma adolescente magra e com muita coisa em mente. A garota de 14 anos, que costumava ter muitos sapatos, deixou de ir a escola em alguns dias porque não tinha nada para usar em seus pés. Ela passa semanas sem comer carne. Ela esqueceu como é o gosto de um copo de água gelada.

Sua família - sua mãe e seis irmãos, que vivem no bairro de La Vega, no oeste de Caracas - nunca foi rica. Mas nunca havia faltado nada a eles. Sempre havia dinheiro para comida, material escolar e uniformes. Agora essas coisas básicas estão fora de seu alcance.

Então, Milagros se preocupa. Às vezes ela perde o sono, pensando em todas as coisas que ela perdeu e em todas as coisas que sua mãe precisa e em todas as maneiras que Milagros quer ajudar e em todas as maneiras que ela não consegue.

"Às vezes eu acho que minha mãe vai ter um ataque cardíaco ou sua cabeça vai explodir", diz ela. "Eu nunca vi minha mãe assim".

Por que, Milagros pergunta a si mesma, ela não pode tomar um gole de água gelada antes de dormir? Como sua educação será afetada agora que a aula termina duas horas antes porque o professor deixou o país? Por que ela não tem mais um lanche para comer depois da escola ou carne para o jantar?

As respostas são sempre insatisfatórias. "Eu quero que a Venezuela seja como era antes", diz ela.

As três bisnetas

Em um orfanato do outro lado de Caracas, uma criança de quatro anos de idade segura o rosto enrugado de sua bisavó em suas pequenas mãos rechonchudas e a enche de beijos.

"Leve-me para casa com você", ela implora.

Gabriela Román enfrenta essa despedida duas vezes por semana no orfanato Las Villas de Los Chiquiticos, onde deixou suas três bisnetas.

A mãe delas partiu para a Colômbia no ano passado. Depois o pai delas foi para lá. Elas não têm notícias dos dois desde então.

Román, que sobrevive com uma magra pensão do governo, mal consegue se alimentar.

A desnutrição crônica é agora generalizada. A comida que está disponível é inacessível para muitas famílias.

As crianças "não sabem quando vão comer e têm a sensação de que, não importa o que façam, não vão conseguir passar por isso", disse a psicóloga Ninoska Zambrano, que trabalha com a organização sem fins lucrativos que administra o orfanato. Os organizadores agora oferecem comida para mais de 500 famílias vulneráveis ​​nas favelas de Caracas.

Carlos Trapani, diretor da Cecodap, conta da criança que estava convencida de que seu pai não a amava mais, porque em vez de receber duas arepas - pães de milho - no café da manhã, ela recebia uma.

"A confiança entre a criança e o adulto é quebrada quando coisas básicas não são fornecidas", disse Nathalie Abuchaibe, diretora do orfanato.

Román, de 75 anos, pega um ônibus de sua casa na favela de Petare, em Caracas, para passar 90 minutos brincando e conversando com suas bisnetas. Ela limpa carinhosamente o rosto das crianças depois de elas comerem uma manga que custou tanto dinheiro que ela provavelmente não vai comer naquele dia.

"Eu não durmo bem sem elas", disse Román. "Se isso não estivesse acontecendo, essas meninas não estariam aqui."

Ela mal tem força para colocar as três meninas - com idades de 18 meses, 3 e 4 anos - em um carro miniatura movido a bateria que parece um Cadillac Escalade. As baterias acabaram, então ela usa toda a sua energia para empurrar o veículo de brinquedo lentamente pelo pátio do orfanato enquanto as meninas se divertem. Então, sem conseguir desviar, elas batem em uma parede de tijolos.

É hora de Román ir embora.

Do outro lado de Caracas, nos bairros mais ricos do distrito de Chacao, Alejandro, de 15 anos, e suas duas irmãs levantam cedo dos pedaços de papelão em que dormem para procurar no lixo alguma coisa para comer. Eles chamam isso de reciclagem.

Alejandro deixou sua casa em Petare anos atrás. Logo, suas irmãs de 12 e 11 anos se juntaram a ele nas ruas.

"Esta é uma geração ferida e nós falhamos com eles", disse Trapani.

A Vida é Bela

O reverendo Alfredo Infante diz que a crise está roubando a infância das crianças em sua paróquia. As escolas estavam morrendo. A pobreza corroía as famílias. E as orações das crianças mudaram. Elas deixaram de pedir a intervenção divina nos testes escolares para implorar aos santos que garantissem que a comida agraciasse suas mesas na hora do jantar.

Yaneth Moraima é diretora da escola Manuel Aguirre em Petare, que atende 916 alunos do 1º ao 12º ano.

"Eles pararam de brincar, deixaram de ser eles mesmos, para esperar na fila por comida, água e ficar em casa para assumir responsabilidades adultas", disse ela.

Dezenas de professores foram embora. Moraima ainda abre a escola para dar às crianças uma fuga. A Cruz Vermelha ajuda a fornecer comida.

"Eles não voltam pela educação, eles vêm para uma refeição", disse ela. "Está ficando cada vez mais difícil atender às crianças. Elas brigam com mais frequência. Suas vidas estão impregnadas de ansiedade".

O mesmo acontece no bairro de Infante. Em um dia enquanto orava profundamente, o padre jesuíta lembrou-se do filme "A Vida é Bela".

"Esse filme é sobre um pai tentando proteger seu filho dos horrores do Holocausto através de uma brincadeira", disse ele. "Eu me perguntei se eu poderia fazer o mesmo."

Infante abre uma escola como uma zona livre de crise, onde, por algumas horas por dia, as crianças conseguem fingir que a Venezuela não mudou. Milagros - a jovem de 14 anos - corre descalça atrás de uma bola de futebol em uma quadra de basquete empoeirada, mais alta do que os garotos pré-adolescentes desnutridos.

"Aqui não falamos de política", disse ela. "Aqui eu sou livre."

Voluntários do bairro servem refeições, fazem pinturas nos rostos, organizam jogos de bola e ajudam os pequenos a fazer pipas com sacolas plásticas. É o único lugar onde as crianças não precisam ouvir ou falar sobre a "situação".

"Este é o oxigênio deles", disse Flor Fuentes, 33 anos, professora de educação especial que trabalha como voluntária no programa de recreação de Infante. "Elas sabem que abrimos às 9 da manhã, mas às vezes as crianças chegam às 7 da manhã".

Existem planos de exibir o filme "A Vida é Bela" aos pais para ensiná-los a não transmitir sua angústia aos filhos. Infante e Moraima estão trabalhando com outras organizações sem fins lucrativos em Caracas para treinar as famílias para suportar a crise emocionalmente.

Gioconda Iguaro, de 36 anos, traz a filha para pular e brincar e socializar. É uma distração para a menina de 9 anos de idade, mas também alivia o estresse para a mãe. Iguaro tenta esconder os problemas da Venezuela de sua filha, mas a menina sabe.

"Minha filha reclama e me faz perguntas como: 'Mami, por que não temos mais um carro?' Ou: 'Por que não comemos mais biscoitos?' Às vezes eu explodo e grito com ela. Houve muitas vezes em que tive que pedir desculpas".

"É difícil ser mãe na Venezuela. Você quer dar aos seus filhos o melhor, mas você não pode..."

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