De várias formas, o objeto do maior escândalo de abuso sexual francês se encaixa perfeitamente com os casos de homens acusados de assédio no outro lado do Atlântico. Ele é uma figura proeminente e opera nos mundos progressistas da acadêmia e do jornalismo. Mas, por outro lado, o "caso Ramadan" é significativamente diferente.
Tariq Ramadan – o escritor e filósofo acusado de estuprar duas mulheres – é uma das figuras muçulmanas mais controversas numa França que ainda tenta entender o papel da religião, principalmente do Islamismo, na vida pública. Mas, inesperadamente, os acusadores de Ramadan também são muçulmanos.
O caso já foi muito além das alegações contra Ramadan e virou um debate novo sobre as defesas que ele faz do Islamismo, vista por alguns como contribuições importantes para desenvolver o multiculturalismo ocidental e por outros como incompatíveis com os ideais franceses de secularismo e assimilação.
As alegações sobre Ramadan – que ele negou e chamou de "campanha de difamação" – tiveram respostas de quase todos os lados do ecossistema político e intelectual francês.
Para muitos dos detratores, há uma ironia interessante em alguém que defendeu as virtudes do direito islâmico se defender das acusações com o sistema legal ocidental. Já feministas afirmam que focar o debate nas opiniões de Ramadan afasta a conversa da questão do abuso e da política de gênero. Alguns intelectuais de esquerda alegam que o caso expôs a islamofobia profunda presente na França.
"A questão já não é sobre as vítimas ou sobre Ramadan ter abusado mulheres sexualmente, mas sobre dois pontos de vista diferentes sobre o secularismo e o lugar do Islamismo no debate político", disse Cécile Alduy, uma analista política e professora da Universidade de Stanford. Para ela, "o que começou como uma discussão dos direitos da mulher se transformou num debate político sobre o Islamismo".
As alegações contra Ramadan surgiram no fim de outubro, durante o pico da campanha #balancetonporc, correspondente à campanha americana #MeToo (#EuTambém), que encoraja as mulheres a compartilhar nas redes sociais histórias de abusos que sofreram.
“Achei que iria morrer”
Henda Ayari, uma feminista com histórico ultraconservador, acusou Ramadan de estuprá-la num hotel em Paris em 2012. "Ele literalmente veio para cima de mim como um animal selvagem", disse ela na televisão. "Por alguns segundos ele me chocou muito. Eu realmente achei que iria morrer". Ela não foi encontrada para dar maiores esclarecimentos sobre o caso.
Alguns dias depois, uma alegação similar apareceu, dessa vez vinda de uma mulher de 45 anos que se converteu ao Islamismo. Ela alegou que Ramadan a estuprou em seu quarto de hotel em Lyon em 2009. Depois da segunda acusação, um procurador de Paris abriu uma investigação para os dois casos. A Universidade de Oxford, onde Ramadan trabalha, o colocou de licença.
Ayari relatou também ter recebido ameaças de morte nas redes sociais e recebeu proteção policial de acordo com seu advogado.
Ataque a judeus
Ramadan – neto de Hassan al-Banna, fundador da Irmandade Muçulmana do Egito – defende a vida comum muçulmana com tanta força que alienou os intelectuais franceses de esquerda e de direita.
No país que mais lidou com o impacto da luta europeia contra a violência terrorista em anos recentes, Ramadan parece estar tentando explicar – e até desculpar – a ação dos terroristas, muitos deles homens jovens e muçulmanos.
Ele escreveu em um artigo em 2012 que "os jovens que se juntam a grupos extremistas estão claramente sofrendo de deficiências massivas de conhecimento religioso e são politicamente ingênuos (quando não estão se cortando para se livrar da culpa de uma vida de delinquência)".
Também não é possível esquecer um artigo dele de 2003, no qual atacou vários "intelectuais judeus franceses" de abandonar os valores universais para defender Israel. Na realidade, um dos intelectuais mencionados, Pierre-André Taguieff, não era judeu, mas tinha um nome que Ramadan assumiu como tal. Na França, isso rendeu a Ramadan uma reputação de antissemita, uma fama da qual ele tenta se livrar desde então.
No meio dessa controvérsia, o crítico mais proeminente de Ramadan é Manuel Valls, o antigo Primeiro Ministro socialista e atual deputado parlamentar que, ano passado, comandou a cruzada contra a roupa de banho muçulmana, o "burkini".
"Eu denuncio há muito tempo a ambivalência de Tariq Ramadan", disse Valls em um programa de rádio, chamando Ramadan de "pseudo-intelectual" e "promotor da sharia [a lei islâmica]" que "fez um dano terrível a nossa juventude com seus vídeos e pregando nas nossas mesquitas".
Duplo padrão?
Já os líderes muçulmanos franceses atacaram o que eles viram como um padrão duplo: a indignação pública com as acusações de abuso por um proeminente muçulmano são maiores do que casos semelhantes, como as acusações de estupro do ex-chefe do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, em 2011. Ainda que Strauss-Kahn tenha se afastado completamente da vida pública, um número considerável de políticos franceses – incluindo Manuel Valls – defendem que ele foi uma vítima de conspiração política.
Mas os líderes muçulmanos afirmam principalmente discordar da maneira com que Ramadan tem sido atacado.
"Pode-se dizer que nós islamizamos uma questão de direito e ética. Ao invés de focar nos crimes que temos em mão, o julgamento de um homem se torna o julgamento de toda uma comunidade islâmica", disse Yasser Louati, um defensor das liberdades civis na França. "Infelizmente, esse debate escondeu o debate sobre abuso sexual, que é uma praga que as mulheres sofrem por muito tempo".
O jornal satírico Charlie Hebdo ecoou rapidamente Valls, publicando uma capa que retrata Ramadan com uma grande ereção. "Eu sou o sexto pilar do Islamismo", diz a legenda.
Vários jornalistas e intelectuais condenaram a capa, que viram como uma tentativa de "achar um pretexto, alguma calúnia, para voltar para a obsessão deles: a guerra contra os muçulmanos, a demonização de tudo que se relaciona ao Islamismo", nas palavras de Edwy Plenel, editor do Mediapart, um tablóide popular.
Charlie Hebdo – que teve funcionários atacados por terroristas islâmicos em janeiro de 2015 em uma ação que matou 12 pessoas – evocou essa memória. Jornalistas do jornal relataram que receberam várias ameaças de morte depois da capa de Ramadan e a polícia já abriu uma investigação formal sobre o assunto.
O editor do jornal, Laurent Sourisseau, publicou um editorial acusando Plenel de "condenar o Charlie Hebdo à morte pela segunda vez". A edição tinha também uma imagem que apresentava o rosto de Plenel com variações da frase "ver nenhum mal, ouvir nenhum mal, falar nenhum mal".
As feministas se juntaram ao coro para martelar uma questão: por que existem poucas mulheres – especialmente poucas muçulmanas – incluídas no debate?
"Tem uma parte da mídia que fala incansavelmente sobre Tariq Ramadan. Isso apaga todos os outros casos, todas as outras questões", disse Raphaëlle Rémy-Leleu, porta-voz do movimento Osez le féminisme ("Ouse ser feminista"), uma organização de defesa das mulheres. "Esse é um debate sobre assédio sexual que se tornou em um debate sobre um caso específico de agressão".
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