A tentativa de controle da informação dentro do território russo parece ser uma tarefa mais árdua do que pode ter calculado o presidente do país, Vladimir Putin. A onda de insatisfação popular – que já resultou em 7 mil presos na Rússia, até esta quinta-feira (3) – traz à tona uma questão que pode ter reflexos no futuro da Guerra na Ucrânia. Até que ponto a opinião pública interna pode desestabilizar a estratégia de Putin?
Uma semana após o início da invasão, os soldados do Kremlin seguem na ofensiva, não só em território ucraniano. Também dentro da Rússia, com armas um pouco diferentes. No lugar das bombas, censura à imprensa, sinal de internet mais lento para acesso a redes sociais (e restrições a algumas), órgãos oficiais falando em “desnazificação” de uma Ucrânia que estaria cometendo genocídio contra russos, pesquisa oficial de opinião mostrando crescimento da aprovação do presidente.
Desde a determinação do Roskomnadzor, agência reguladora das comunicações, de que a mídia independente na Rússia não utilize temos como guerra, ataque ou invasão, pelo menos dois importantes veículos foram suspensos: a TV Dojd e a Rádio Eco Moscou. Esta última, nascida em 1990, no ocaso da União Soviética, é considerada um símbolo da resistência democrática no país.
Mesmo com o cerceamento aos veículos, a desaprovação a Putin consegue encontrar brechas. Em um aparente ato de sabotagem, nesta quinta-feira, a TV estatal RT (Russia Today) usou pela primeira vez uma vinheta “Guerra na Ucrânia” em sua programação. A expressão aprovada é "operação militar especial no Donbass", indicando que a ação militar pretende proteger russos étnicos no leste do país vizinho. A mudança no tom ocorre paralelamente ao pedido de demissão de apresentadores, que tornou inviável o trabalho do veículo em capitais europeias.
Na internet, ficam vestígios
Se por um lado Putin alega pretensões de “desnazificar” a Ucrânia, por outro se utiliza do conhecido expediente nazista de investir em desinformação para obter apoio a seu projeto de expansão e dominação. A diferença é que, na era da internet, um deslize dificilmente consegue ser varrido sem deixar vestígios.
Episódios na própria mídia ligada ao Kremlin reforçam isso. Um artigo publicado de forma aparentemente precipitada no sábado, pela agência de notícias estatal russa RIA Novosti, comemorava a vitória da Rússia, que estaria “restaurando sua unidade” com a conquista da Ucrânia. “A Rússia está restaurando sua plenitude histórica, reunindo o mundo russo, o povo russo — em sua totalidade de grandes russos, bielorrussos e pequenos russos”, dizia o texto.
Em análise no periódico britânico The Spectator, Marl Galeotti, autor de 24 livros sobre a Rússia, analisa que, presumivelmente, o artigo deveria ir ao ar somente após a vitória russa, mas acabou se tornando público antes. “O erro foi rapidamente percebido, mas na era da informação moderna nossas edições e erros permanecem embutidos nas camadas geológicas da internet”, ponderou. Embora a página tenha sido removida, o original segue arquivado no Wayback Machine, serviço que arquiva páginas da internet, e foi impresso no The Frontier Post, jornal em língua inglesa, publicado no Paquistão.
Outro sintoma de que a estratégia de censura de Putin pode estar implodindo é um texto publicado pela agência TASS, no domingo. Após relatar a ordem do presidente de que as forças nucleares do país estavam em alerta máximo, o artigo listava baixas de 146 tanques e 4.300 soldados russos, acrescentando: “De acordo com fontes confiáveis do Ministério da Defesa da Federação Russa, Putin está pessoalmente extremamente desapontado com o progresso da operação militar”. “Desde então, o artigo foi apagado da rede, mas essas contas coincidem com o número anunciado pelo vice-ministro da Defesa da Ucrânia”, alertou Galeotti, questionando se a publicação seria resultado de um hackeamento ou de sabotagem deliberada de algum jornalista da TASS.
Big Techs na vigilância
O mundo também assistiu a uma reação inédita das gigantes da tecnologia, que impuseram restrições à Rússia, como resposta à invasão. O Google Maps, por exemplo, foi temporariamente desativado na Ucrânia, para garantir a segurança da população. A Meta, detentora do Facebook, também disse ter removido cerca de 40 perfis que espalhavam informações falsas sobre a guerra.
A Google Europe informou nesta terça-feira (01) que bloqueou os canais do YouTube na Europa dos meios de comunicação RT e Sputnik, vinculados ao governo da Rússia. A plataforma de vídeos já havia limitado a capacidade de os dois veículos monetizarem conteúdos através de publicidade. Anteriormente, a companhia Meta divulgou que restringiria o acesso aos mesmos veículos russos nas redes sociais Facebook, Instagram e WhatsApp.
Além disso, o Twitter passou a colocar um alerta sobre os conteúdos postados por RT e Sputnik, indicando que há ligação com o governo russo. As medidas respondem a pedido da União Europeia, sobre a limitação dos meios de comunicação que estariam difundindo conteúdo de propaganda estatal.
A Apple interrompeu a exportação e venda de produtos da marca na Rússia, limitando os apps de RT e Sputnik em sua loja. Já a Netflix interrompeu a adição de canais russos à plataforma e o Spotify anunciou o fechamento de seu escritório no país.
Desaprovação cresce
Manifestações populares, com bandeiras de “Não à guerra", também têm crescido nas ruas das principais cidades russas, resultando em milhares de presos. Alexei Navalny, um dos principais líderes da oposição a Putin, encorajou nesta quinta, por meio do Twitter, que seus compatriotas saiam “todos os dias para a praça principal de sua cidade”.
"A Rússia quer ser uma nação de paz. Infelizmente, poucas pessoas nos chamariam assim agora. Mas ao menos não vamos nos tornar um país de pessoas assustadas e silenciosas, de covardes que fingem não notar a guerra contra a Ucrânia desencadeada por nosso obviamente czar louco", afirmou Nalvany, preso desde janeiro de 2021, e que acusa os serviços secretos do país de tentativa de assassinato por envenenamento.
Dmitry Muratov, jornalista independente ganhador do Nobel da Paz em 2021, disse ao The Guardian que não há qualquer “entusiasmo” entre a população russa pela guerra na Ucrânia.
"A lembrança da Segunda Guerra Mundial, de que as pessoas têm parentes na Ucrânia e de que a Ucrânia é um país querido para nós detém até os mais fanáticos apoiadores da atual liderança", argumentou.
Mas a desaprovação não para em questões ideológicas e morais. A situação econômica do país, após severas sanções mundiais, põe a Rússia na iminência de um colapso social. Vídeos em redes sociais mostram cidadãos indo às pressas a caixas eletrônicos, temendo o fechamento e bancos e a desativação de cartões de crédito.
Vale lembrar que a assombrosa desvalorização da moeda, os juros e os bloqueios anunciados por grandes potências afetam de maneira direta os oligarcas russos. O cenário tem levado analistas a apostar em um crescimento da pressão das elites sobre o governo Putin.
“Queremos afetar a elite russa, que apoia Putin e se beneficia desse regime, e além desse pacote de sanções (incluindo a exclusão do Swift), temos outras que focam em corrupção e desinformação”, afirmou o vice-presidente da Comissão Europeia Josep Borrell, no domingo.
Força da opinião pública
A História lembra outras situações em que a reação pública foi determinante para os rumos de conflitos. Na Guerra do Vietnã, por exemplo, que teve ampla cobertura dos meios de comunicação, a população norte-americana recebia um grande volume de imagens dos combates, incluindo ataques químicos e massacres de civis. Em meio a esse contexto e a denúncias de ausência de auxílio às vítimas, ganharam corpo manifestações pacifistas nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo, pressionando pela retirada das tropas americanas, que começou a ocorrer em 1973.
Uma mudança na opinião pública também colaborou com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Em dezembro de 1941, a comoção e indignação dos norte-americanos diante do ataque japonês a Perl Harbor levou o país, que se mantinha até então neutro, a tomar parte no conflito. Também foram sequências de manifestações, insubordinação popular e greves que levaram à queda do governo russo, na Primeira Guerra Mundial.
Os eventos não são comparáveis, mas são um farol quando se analisa a importância da popularidade em grandes decisões políticas. A aposta de Putin em uma “guerra da desinformação” mostra sua ciência disso. “É incrível ver a guerra de informação moderna evoluindo em tempo real”, disse à revista Time a pesquisadora de desinformação e ex-analista da CIA Cindy Otis.
Na sexta-feira, enquanto tropas russas atacavam Kiev, rumores espalhados pela mídia do Kremlin diziam que o presidente Volodymyr Zelensky havia fugido do país. O próprio mandatário da Ucrânia desmascarou a narrativa dos invasores, colocando em seu perfil do Twitter um vídeo em que caminhava pelas ruas da capital. Em tempos de redes sociais, o desfecho de um conflito que tenha a informação como arma fica ainda mais difícil de prever. (Colaborou Fábio Galão)