Soldados brasileiros que fazem parte da missão da ONU no Haiti vigiam protesto em Porto Príncipe: presença militar das Nações Unidas no país é questionada| Foto: Kena Betancur/Reuters

Genocídios

Apesar da ONU, mundo teve massacres

Mesmo após a criação do Conselho de Segurança da ONU, o mundo assistiu a genocídios na segunda metade do século 20.

Entre 1975 e 1979, estima-se que 2 milhões de pessoas (25% da população na época) foram mortas no Camboja pelo regime comunista liderado por Pol Pot.

Uma ação internacional foi cogitada, mas a ideia entrou em conflito com os interesses da China, aliada de Pol Pot, que usou o direito a veto no Conselho de Segurança para barrar as iniciativas de intervenção humanitária.

Ruanda

Em abril de 1994, a morte do presidente Juvenal Habyarimana deu início a uma série de massacres executados pelo grupo étnico dos hutus contra a minoria tutsi, resultando em aproximadamente 800 mil mortos. No dia 7 de abril, depois da morte de 10 soldados da missão de paz que a ONU já mantinha no país, o Conselho de Segurança ordenou a retirada de todas as tropas, deixando a população civil entregue à própria sorte.

Bósnia

Em julho de 1995 o exército sérvio, sob o comando do general Ratko Mladic, na então Bósnia e Herzegovina colocou em ação o que foi chamado de "limpeza étnica" e exterminou 8.373 pessoas. O evento ficou conhecido como Massacre de Srebrenica e foi o primeiro genocídio em solo europeu legalmente reconhecido desde a Segunda Guerra Mundial.

Quinze anos depois, ex-militares que serviam às tropas da ONU denunciaram que membros do Conselho de Segurança sabiam dos planos do exército sérvio e nada fizeram. Pesquisas do jornalista holandês Huub Jasper confirmam a acusação.

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Como em toda intervenção in­­ternacional em Estados soberanos, a ação militar da coalizão na Líbia provocou protestos e debates. Ainda que nenhum membro do Conselho de Segurança da ONU tenha vetado a proposta, reclamações de abusos vieram logo em seguida. Contradições e divergências ocorreram também na invasão do Iraque em 2003, no embargo a Cuba, que dura quase 50 anos, e nas recentes sanções aplicadas ao Irã. O Direito Internacional prevê a maioria dessas ações mas, para especialistas, a tensão e a incerteza são inevitáveis no momento de decidir até que ponto as nações devem deixar um país resolver seus problemas por conta própria e quando é preciso intervir.

Desde o fim da Primeira Guer­­ra Mundial, desenvolveu-se na área das Relações Internacionais a ideia de que para diminuir o nú­­mero de conflitos armados era preciso que a decisão de fazer uma guerra fosse discutida pela coletividade. Esse ideal deu origem à Liga das Nações, que foi posteriormente substituída pela Organi­­zação das Nações Unidas (ONU).

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O professor de Direito Inter­­nacional Eduardo Saldanha, do Centro Universitário FAE, explica o papel das Nações Unidas em momentos de crise. "É dentro do Conselho de Segurança da ONU que são tomadas as decisões mais importantes referentes às intervenções internacionais, e suas resoluções devem ser tomadas como norma", explica o professor. Entretanto, a história mostra que ações unilaterais continuaram a acontecer, independentemente das decisões do Conselho.

Em 1990, o Iraque governado por Saddam Hussein invadiu o Kwait alegando roubo de petróleo do solo iraquiano. A ação foi to­­mada de forma isolada, sem consulta ou aviso às Nações Uni­­das, e culminou com a anexação do território kwaitiano ao Iraque. A ONU condenou a invasão e im­­pôs ao país de Saddam Hussein um boicote comercial, financeiro e militar. Sem sucesso nas negociações, o uso da força foi autorizado para uma coalização encabeçada por EUA e Grã-Breta­­nha, resultando no conflito co­­nhe­­cido como Guerra do Golfo Pérsico.

Mais recentemente, em 2003, foi a vez de o governo norte-americano ignorar os apelos das entidades internacionais, quando in­­vadiram o Iraque e tiraram do poder o mesmo Saddam Hussein. Foram numerosas as críticas à investida e houve consequências.

"Os EUA perderam poder de barganha, não foram reconduzidos à cadeira de Direitos Huma­­nos da ONU e enfrentaram propostas de sanções contra o país", diz Saldanha, explicando porém que não há meios de obrigar um Estado a aplicar o que é decidido pelo Conselho de Segurança.

"Essa é uma questão complexa do Direito Internacional, porque a aplicabilidade dessas sanções de maneira coercitiva não existe. Os Estados devem cumpri-las voluntariamente", conclui.

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Motivos

Em geral, o Conselho de Segu­­ran­­ça impõe sanções ou intervenções a um país quando o seu go­­verno comete abusos contra os direitos humanos ou quando há uma clara ameaça à paz. Nesses casos, as resoluções invocam va­­lores como a autodeterminação dos povos, a segurança da coletividade e a defesa da população civil.

Casos como o da Líbia, entretanto, exigem uma diferenciação importante. "Quando há in­­surgência, os rebeldes têm o direito de serem tratados como prisioneiros de guerra, já os não combatentes são protegidos por am­­bos os lados. Isso caracteriza direitos humanitários, e não di­­reitos humanos", explica Luís Alexan­­dre Winter, professor de direito internacional da Ponti­­fícia Uni­­ver­­sidade Católica (PUC-PR), lembrando que tanto as tropas de Ka­­dafi quanto as da coalizão se acusam de matar civis e, ao mesmo tempo, dizem tentar protegê-los.

O caso das sanções ao Irã se enquadra na categoria das ameaças à paz. As suspeitas de que o programa nuclear do governo de Mahmoud Ahmadinejad não tem fins exclusivamente pacíficos, agravadas pela recusa em re­­ceber inspetores da ONU, foi o que motivou a recomendação de sanções contra o país pelo Conse­­lho de Segurança.

As últimas resoluções da instituição proibiram a venda de ar­­mamentos pe­­sados ao Irã e congelaram os ativos de 40 empresas iranianas.

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Mas nem sempre as intervenções acontecem contra determinado governo. Também podem ocorrer para fornecer algum tipo de ação humanitária.

A missão de paz no Haiti, liderada pelo exército brasileiro, foi instaurada em 2004 com o objetivo de estabilizar a sociedade e promover o de­­senvolvimento ins­­titucional. Mes­­mo após a realização de eleição presidencial, em 2006, as tropas da ONU permaneceram no país e ainda hoje trabalham em conjunto com o presidente René Preval. O terremoto que atingiu o Haiti em 2010 levou as Nações Unidas a estender a missão até outubro deste ano.

Opções

Não há uma lista oficial que limite as medidas a serem tomadas pelo Conselho de Segurança em casos de crise, já que cada caso tem suas nuances estudadas se­­paradamente, mas algumas ações são praticadas com frequência.

Num mundo onde as nações dependem umas das outras para obter o que consomem, as sanções comerciais são as mais co­­muns. A aplicação de um embargo proíbe os países membros da ONU de exportar ou importar os produtos citados pela resolução ao Estado a ser punido. Armas e tecnologia costumam ser os primeiros itens a serem bloqueados, podendo chegar à proibição de qualquer relação comercial.

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Resoluções do Conselho de Segurança não impedem que outras entidades apliquem sanções adicionais. A União Euro­­peia, por exemplo, optou por in­­tensificar as medidas contra o programa nuclear do Irã e suspendeu, em 2010, qualquer in­­vestimento no setor de gás e pe­­tróleo do país.

Já o embargo dos Estados Uni­­dos a Cuba, em vigor desde 1962, enfrenta a condenação explícita das Nações Unidas. Motivado inicialmente por violações aos direitos humanos e pela nacionalização de empresas norte-americanas, a sanção imposta à ilha já foi debatida na Assembleia-Geral da ONU 17 vezes.

Entre as outras medidas disponíveis estão o congelamento de bens no exterior, recentemente aplicado ao ditador líbio Muamar Kadafi, as restrições de admissão, impedindo a emissão de vistos e viagens a representantes do Es­­tado punido, e o uso da força militar, primeiramente com a im­­plantação de zonas de exclusão aérea e, em última instância, com o envio de tropas de ocupação por terra.

Punição também pode cair sobre indivíduos

As resoluções do Conselho de Segurança da ONU ou as sanções impostas unilateralmente por alguns países se aplicam a Es­­tados, não a indivíduos. Para julgar e punir pessoas acusadas de delitos graves previstos no direito internacional, como genocídio e crimes de guerra, foi criado em 2002 o Tribunal Penal In­­ter­­nacional, com sede em Haia, na Holanda.

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Diferentemente da maioria das agências vinculadas às Na­­ções Unidas, o TPI tem poder de coerção para aplicar suas definições . "Os países que assinaram o Tratado de Roma (documento que cria a instituição) se comprometem a entregar ao tribunal o seu cidadão para que ele seja julgado, condenado e cumpra pe­­na", explica o professor Eduardo Saldanha.

Julgado

Exemplo de ação do tribunal foi o julgamento do ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, preso em 2001 acusado de crimes contra a humanidade por seu papel nas guerras da Croácia, Bósnia e Kosovo, na década de 90. Milo­­sevic morreu na prisão, em 2006, antes de receber o veredito.

Omissões custaram milhões de vidas

Se a legitimidade das intervenções estrangeiras é passível de discussão, a história também apresenta exemplos em que a inércia das potências mundiais custou milhões de vidas. Falta de atrativos econômicos, alianças entre governos e até mesmo a distância geográfica dos grandes centros já foram justificativas para o adiamento de ações ou a completa omissão da comunidade internacional.

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Para o coordenador do curso de Relações Internacionais do Unicuritiba, Juliano da Silva Cortinhas, a diferença de atenção destinada a alguns confrontos em detrimento de outros é definida por interesses políticos. "O Conselho de Segurança da ONU é um órgão político. Quan­­do não age, a razão é a de que não há interesse o suficiente", afirma o professor.

Segundo Cortinhas, os casos de omissão mais conhecidos não expõem todas as situações em que civis de países pobres são abandonados pelas autoridades internacionais.

"Foi o caso de Ruanda, mas ainda hoje é o da Somália, onde não há governo, nem autoridade e a população sofre diariamente", relata.