Em seis de junho, os EUA e seus aliados europeus comemoraram o 75º aniversário do Dia D, evento crucial para libertar o continente da tirania; entretanto, os dois lados estão envolvidos em uma briga feia sobre o futuro e o custeio da defesa do Velho Mundo.
Há bem mais de uma década, Washington vem pressionando a União Europeia para que invista mais e faça mais por sua própria segurança; Donald Trump é apenas o último a fazê-lo, e de uma forma mais incisiva.
Só que, agora que a EU está efetivamente atuante, tendo instaurado um fundo de defesa e um projeto para cooperação e desenvolvimento militares, os norte-americanos passaram a criticar a forma como as coisas estão sendo feitas, alegando que as medidas podem prejudicar a cooperação transatlântica e impedir suas empresas de disputar os contratos com potencial mais lucrativo.
Quando muito, a disputa é mais um lembrete da tensão que marca as relações entre o governo Trump e a zona do euro, e as diferenças em relação a questões como a balança comercial, a mudança climática e o Irã; o fato de o plano europeu de aumentar os gastos militares, aceitando as exigências de Trump, ter azedado só enfatiza o tamanho do desgaste.
Diplomatas revelaram que a questão passou dos limites em uma reunião particular em Washington, quando Michael J. Murphy, membro do alto escalão da Agência para Assuntos Europeus e Eurasianos, deixou bem claro aos embaixadores da UE a insatisfação dos EUA com as restrições propostas à participação de terceiros nos projetos de defesa do bloco.
E alertou: "Essas iniciativas podem fragilizar a segurança transatlântica ao duplicar os esforços da OTAN e usar recursos valiosos, fazendo com que todos fiquem menos seguros, incluindo os norte-americanos."
Fundo de Defesa Europeu
O confronto basicamente abrange duas iniciativas de gastos militares do Velho Mundo; pela primeira vez haverá um Fundo de Defesa Europeu, tirado do orçamento de pesquisa e desenvolvimento do bloco, planejado com um início relativamente modesto de 13 bilhões de euros, ou cerca de US$ 14,6 bilhões, no período de 2021-27.
Há também um programa chamado Cooperação Estruturada Permanente, ou PESCO (na sigla em inglês), em que 25 dos 28 países-membros concordaram em trabalhar em projetos militares cooperativos. Pequenas coalizões de Estados-membros já estão fazendo propostas para a construção de helicópteros de ataque e veículos de infantaria blindados.
Mas tanto Londres como Washington expressaram preocupação com a possibilidade de suas empresas de defesa contratadas ficarem de fora da empreitada, já que a iniciativa especifica que a participação de terceiros se dará "em casos excepcionais".
"Com o atual projeto de regulamentação, os setores de defesa norte-americano e europeu correm o risco de se desvincularem, depois de décadas de esforço para aumentar a integração. Ele só vai beneficiar nossos adversários e criar uma relação irritante entre os dois lados", prossegue Murphy.
Muita gente acha essa linguagem exagerada e acredita que a Europa deveria fazer o mesmo, principalmente vendo o Pentágono gastar o dinheiro do contribuinte praticamente só com material de defesa.
O aumento da verba militar é um tema polêmico na Europa, principalmente porque Trump, antipatizado por muitos, é quem está pressionando a questão, e os políticos locais precisam mostrar que tamanho investimento vai gerar empregos no país.
"O governo Trump não pode querer só benefícios; os EUA têm direito de querer que os europeus invistam mais em defesa, mas o objetivo final deve ser uma capacidade europeia maior de contribuir para um fim comum; para isso, o continente precisa reforçar sua base industrial. Uma forma de fazer isso é por meio das iniciativas assumidas pelo bloco", afirma Stefano Stefanini, ex-embaixador italiano para a OTAN e hoje consultor da Project Associates em Bruxelas.
Um funcionário do Departamento de Estado – que pediu anonimato por estar divulgando publicamente o que foi uma conversa particular –, explicando o contexto dos comentários de Murphy, disse que as discussões e as manobras continuavam. Entretanto, ele também reclamou do vazamento na imprensa, promovido pelos europeus, de uma carta de 16 de maio para Washington, antes mesmo de os norte-americanos a terem recebido.
A missiva era resposta a outra, de 1º de maio, escrita por dois funcionários dos Departamentos de Defesa e do Estado à diretora da divisão europeia de Política Externa e Segurança, Federica Mogherini, questionando a participação de terceiros.
Em Washington, oficiais também alertam para uma possível retaliação no Congresso se os legisladores considerarem as regulamentações europeias injustas.
Divisão europeia
Para Gordon Sondland, embaixador dos EUA para a UE, uma integração mais profunda das cadeias de fornecimento militar "é do interesse de todos, pois produz os melhores resultados para a segurança de ambos os lados do Atlântico". "Por essa razão, queremos evitar uma situação na qual o Congresso ou o governo vejam uma necessidade de reação a qualquer coisa que pareça unilateral ou protecionista", completa.
Por sua parte, a UE está dividida. Países como a Polônia e os Estados bálticos – Estônia, Letônia e Lituânia – estão mais preocupados com a Rússia e querem ficar mais próximos a Washington. Outros, como a Holanda e a Suécia, também compartilham dos temores dos EUA e querem evitar confronto. Já as nações maiores, com indústrias de defesa significativas ou ambições para uma autonomia estratégica, como a França, a Espanha e a Itália, estão adotando um tom mais duro.
As duas primeiras se mostram particularmente rígidas na tentativa de restringir a participação de terceiros, com leis severas para a proibição de transferência de propriedade intelectual desenvolvida nos projetos de defesa do continente, incluindo empresas norte-americanas com subsidiárias europeias.
Entretanto, todo o bloco é unânime em dizer que o objetivo da PESCO é um trabalho coordenado com a OTAN, e nega que sua intenção seja a de desligar a UE do pacto.
Segundo diversos diplomatas europeus, com 22 dos 28 membros do bloco na OTAN, não há motivo para Washington temer que um setor de defesa do continente mais forte permita o comprometimento da aliança transatlântica, suas capacidades militares ou sua integração.
Em um estudo realizado pelo think tank de segurança GLOBSEC, os autores, incluindo Stefanini, concluíram que os europeus deveriam gastar dois por cento do PIB em defesa, como foi estabelecido pela OTAN, e prosseguir.
"Os europeus precisam gastar mais e melhor em defesa e segurança. Isso só será sustentável se o setor continental se beneficiar e a base industrial estiver consolidada e reforçada", diz o relatório.
Os norte-americanos mencionam as cooperações militares existentes, como no caso do caça F-35, um helicóptero com a firma italiana Leonardo e o uso de fuzis suecos por parte dos fuzileiros. Os dois lados falam do dinheiro que cada um põe e o que recebe em troca.
Os europeus insistem que o complexo industrial-militar dos EUA é tão dominador, e as quantias do fundo de defesa local são tão modestas, que Washington não deveria se preocupar.
Mogherini afirma: "No momento, a UE está mais aberta que o mercado de contratos norte-americano para empresas e equipamentos europeus." Ursula von der Leyen, ministra da Defesa alemã, diz que os europeus "estão fazendo o que nossos amigos norte-americanos vêm exigindo há anos".
Os europeus dizem que as regulamentações da participação de terceiros no fundo já estão definidas, embora os EUA pretendam continuar pressionando por mudanças – e as da PESCO ainda estão em discussão, com uma decisão prevista para julho.
"Nada está concluído e é nosso dever levantar essas preocupações. Apoiamos as iniciativas de defesa europeias; a ideia de que ela não nos interessa não é verdade. Porém é uma preocupação real nossa a de que não deve duplicar a OTAN, deve ser aberta a países terceiros e não pode prejudicar o trabalho conjunto dos setores industriais", conclui o funcionário do Departamento de Estado.
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