Mesmo com o caminho livre para conquistar a nomeação democrata e concorrer à presidência dos Estados Unidos contra Donald Trump, o candidato democrata Joe Biden está enfrentando um problema com potencial de atrapalhar sua campanha.
No fim de março, uma mulher chamada Tara Reade o acusou publicamente de assédio sexual. O caso, segundo ela, teria ocorrido há 27 anos, quando ela trabalhava no gabinete de Biden no Senado. Conheça a história que ela conta, o que diz a defesa de Biden e qual tem sido a repercussão do caso na sociedade americana.
Quem é Tara Reade?
Tara Reade foi assessora de Biden por nove meses em 1993, quando ele era senador e ela tinha 29 anos. Na época ela era responsável por supervisionar estagiários e lidar com a correspondência do gabinete. Depois que deixou o cargo, se formou em Direito na Universidade de Seattle, mas nunca atuou como advogada. Atualmente Reade trabalha como consultora de organizações sem fins lucrativos e é perita criminal em casos de violência contra a mulher no Condado de Monterey, Califórnia. Em abril do ano passado, ela já tinha acusado Biden de tocá-la inapropriadamente na nuca, de maneira que a deixou desconfortável, mas a denúncia de assédio sexual foi feita apenas recentemente.
Qual é a história que ela conta?
Reade acusa Biden de assédio sexual. Em entrevista a jornalista Katie Halper em março deste ano, Reade contou que na época em que trabalhava no Congresso, Biden a encostou contra a parede em um dos corredores vazios do complexo do Capitólio, colocou a mão dele por dentro da saia dela e a penetrou com os dedos. Reade diz que tudo aconteceu muito rápido, mas lembra do senador ter perguntado se ela queria “ir para outro lugar”. Quando ela se afastou, ele teria insistido: “vamos lá cara, ouvi que você gostava de mim”. Com a negativa, Reade relatou um Biden grosseiro, que disse à ela: “você não é nada”. Ele, depois, tentou amenizar a situação dizendo "você está ok" e foi embora.
Reade contou também que o ambiente no escritório do senador não era apropriado, ela sentia-se objetificada. Seus superiores haviam pedido a ela que servisse bebidas em um evento porque Biden “gostava de suas pernas”, o que Reade eventualmente recusou e acabou gerando um mal estar com a sua chefe imediata, e posterior retaliação. Ela citou duas ocasiões, antes do incidente no corredor, em que superiores pediram para que ela usasse roupas menos provocantes. Seu trabalho passou a ser constantemente criticado e suas funções foram limitadas a ponto de ela não ter o que fazer no gabinete a não ser procurar outro emprego.
Reade também contou que encontrou Biden no Congresso algumas poucas vezes depois do suposto assédio e que ele evitou cumprimentá-la. Porém, uma vez, ele teria colocado a mão no ombro dela e passado os dedos no pescoço e cabelos de forma que a deixou desconfortável. Essa história sobre o toque no pescoço havia sido revelada por Reade em abril de 2019, quando outras sete mulheres acusaram Biden de tê-las tocado de maneira inadequada, as deixado desconfortáveis ou invadido seu espaço pessoal no passado.
Reade disse a Halper que, quando ainda trabalhava para Biden, reclamou internamente com os assessores do então senador sobre a forma como foi tratada, mas que a chefe imediata dela deixou subentendido que não queria ouvir sobre o assunto. A única queixa formal que ela prestou na época foi preencher um formulário no qual ela não mencionou a agressão sexual, mas sim a perseguição que estava sofrendo dentro do gabinete. “Eu tentei rastrear esse formulário e me disseram que provavelmente foi devolvido ao escritório de Biden. Portanto, é um material de arquivo”, contou.
Quando perguntada por que não havia revelado a história sobre o assédio sexual em abril de 2019, Reade disse que ainda não estava pronta para isso e que os repórteres que conversaram com ela mostraram pouco interesse pela história e não a deixaram confortável o suficiente para que ela tivesse a iniciativa de contá-la. Ela conversou com o Washington Post e a Associated Press, mas nenhum desses veículos publicou sua história.
Reade contou à Katie Halper que em janeiro de 2020 decidiu que levaria à público sua história completa, mas como já havia sofrido ameaças anteriormente, buscou ajuda da Time's Up, uma organização que trabalha com mulheres que apresentam histórias de assédio sexual, agressão ou discriminação. Mas, segundo reportagem do Intercept de 23 de março, o grupo se recusou a financiar as acusações de Reade contra Biden para não perder o status de organização sem fins lucrativos, já que se tratava de um candidato presidencial.
Reade disse que a decisão de revelar a história não foi fácil. "Eu sempre tive conflitos com Joe Biden", afirmou, citando o trabalho dele pela Lei de Violência Contra as Mulheres. "Então você pode ver como é quase uma dissonância cognitiva. Essa pessoa fez isso comigo, mas ainda assim fez coisas boas”, disse à revista Time.
Há quem confirme a história dela?
Segundo a própria Reade, não há testemunhas do suposto assédio sexual, já que ambos estavam sozinhos na ocasião. Porém, pessoas próximas a ela relataram em entrevistas que lembram de Reade contando essa história no passado: o irmão, uma amiga, uma ex-colega e uma ex-vizinha. Reade disse que contou o episódio para sua mãe, que já morreu.
Uma amiga que morava no mesmo prédio de Reade em Washington naquela época contou à revista Time que Reade falou sobre o suposto ataque "dentro de alguns dias" após ocorrido, no final da primavera de 1993.
"A mãe dela queria que ela fizesse um boletim de ocorrência e eu disse para ela não fazer isso", disse a amiga, cujo número de telefone foi fornecido à Time pela própria Reade. “Eu disse: 'Faça o que você quiser, mas eu não faria, a menos que você esteja pronta para sair de [Washington] DC, porque a cada entrevista de emprego que você fizer daqui em diante, você não será a pessoa que estuda legislação sobre direitos dos animais ou de mulheres agredidas. Você será a mulher que apresentou um relatório policial contra um senador em exercício’”.
Pouco tempo depois que Reade acusou Biden de assédio sexual, um vídeo de um programa de televisão americano de 1993 ressurgiu. Nele, uma voz que aparentemente é da mãe de Reade, Jeanette Altimus, liga para o talk show de Larry King, na CNN, na época do suposto ataque para procurar conselhos sobre os "problemas" que sua filha estava tendo enquanto trabalhava para um "proeminente senador".
De acordo com a CNN, o referido programa foi ao ar em 11 de agosto de 1993 – registros federais listam agosto de 1993 como o último mês que Reade trabalhou no escritório de Biden no Senado. Na conversa, a mulher não se identifica, mas sua localização aparece na tela como San Luis Obispo, na Califórnia, onde a mãe de Reade morava.
Naquele dia o programa tratava sobre a natureza cruel de Washington, política e imprensa. A mulher não menciona agressão sexual ou assédio, nem descreve detalhadamente a que "problemas" ela pode estar se referindo. O nome da filha e de Biden também não são mencionados, mas Reade diz que tem certeza de que a voz no vídeo pertence à sua mãe.
"Estou imaginando o que uma funcionária faria além de ir à imprensa em Washington? Minha filha acabou de sair de lá, depois de trabalhar para um senador proeminente, e não conseguiu resolver seus problemas, e a única coisa que ela poderia ter feito era ir à imprensa e decidiu não fazê-lo por respeito a ele", diz a mulher no telefone ao apresentador Larry King.
Testemunhas a favor de Biden
Marianne Baker, que era assistente executiva de Biden nas décadas de 1980 e 1990, disse em comunicado que nunca teve conhecimento de nenhum relato de conduta inadequada do então senador, inclusive em relação a Reade.
"Em todos os meus anos de trabalho com o senador Biden, nunca testemunhei, ouvi falar ou recebi relatos de conduta inapropriada - não da Sra. Reade, nem de ninguém", disse Baker. "Essas alegações claramente falsas estão em completa contradição com o funcionamento interno de nosso escritório no Senado e com o homem que eu conheço e com quem trabalhei de perto por quase duas décadas".
Dois chefes que trabalharam com Reade no gabiente de Biden e foram citados por ela na entrevista à Katie Halper também negaram ter conhecimento do episódio ou de reclamações por parte da ex-funcionária.
Ted Kaufman, chefe do gabinete do Senado de Biden quando Reade trabalhava lá, disse à CNN que não se lembrava de Reade e que nenhuma reclamação sobre assédio sexual foi levada a sua atenção em todos os anos em que trabalhou com Biden. Dennis Toner, vice-chefe de gabinete de Biden na época e uma das pessoas com quem Reade havia discutido suas queixas, disse à CNN que ele não tinha lembrança de Reade ou qualquer conversa relacionada a acusações de assédio sexual.
A CNN informou que entrevistou meia dúzia de ex-assessores de Biden que trabalharam no escritório dele no Senado no início dos anos 90. Todos eles disseram que não tinham conhecimento de nenhum assédio sexual ou alegações de agressão. Uma investigação do New York Times também não encontrou nenhum ex-funcionário de Biden que confirmasse a história.
O que Biden diz
Quando a história de Tara Reade começou a repercutir na imprensa, a campanha de Joe Biden disse, no início de abril, que o suposto incidente "absolutamente não aconteceu". Um porta-voz de sua campanha disse que ele "acredita firmemente que as mulheres têm o direito de serem ouvidas - e ouvidas com respeito", porém, que a acusação em questão era falsa.
Na sexta-feira (1º), Biden divulgou uma declaração dizendo: "As mulheres merecem ser tratadas com dignidade e respeito, e quando se adiantam devem ser ouvidas, não silenciadas". Mas disse acrescentou que "suas histórias devem estar sujeitas a investigação e escrutínio apropriados", e disse que os jornalistas devem "avaliar o histórico completo e crescente de inconsistências em sua história, que mudou repetidamente de maneiras pequenas e grandes".
Na primeira vez que falou em entrevista sobre o caso, ele disse que o episódio relatado por Reade nunca aconteceu.
A imprensa não conseguiu encontrar o formulário de reclamação que Reade diz ter preenchido quando era funcionária de Biden. O agora candidato à presidência dos Estados Unidos foi pressionado a liberar o acesso aos seus registros de quando era congressista, mas disse que não os divulgaria porque eles não continham informações pessoais e temia que o conteúdo fosse "retirado do contexto". A Universidade de Delaware, que guarda esses documentos, diz que não divulgará nenhum artigo até dois anos depois que Biden deixar a vida pública.
Biden disse, porém, que se existisse alguma reclamação, ela estaria no Arquivo Nacional, e pediu ao Senado que procure em seus registros por qualquer reclamação que Reade possa ter apresentado contra ele.
Democratas apoiam Biden
Para a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, as acusações contra Joe Biden são uma "questão encerrada", que não vale mais a pena discutir.
"Eu disse que tenho orgulho de apoiar Joe Biden na presidência", disse Pelosi. "Acredito nele quando ele diz que não aconteceu. Mas também acreditei quando ele disse: 'Deixe-os olhar nos registros.' E é isso que eles devem fazer”.
A ex-candidata Elizabeth Warren também disse publicamente nesta semana que mantém o apoio a Biden, dizendo que a resposta que ele deu foi convincente e credível. Outras proeminentes legisladores democratas se colocaram ao lado de Biden, como Stacey Abrams, Kamala Harris e Amy Klobuchar, o que levou a críticas de vários republicanos e conservadores, que afirmam que os democratas têm duplo padrão ao tratar casos de assédio sexual quando um deles é o acusado. Entretanto, algumas candidatas progressistas, principalmente millennials, estão ficando ao lado de Reade, como é o caso da candidata à senadora por Delaware, Jess Scarane.
Feministas e defensores do movimento #MeToo parecem estar divididas sobre a história contada por Reade. Rose McGowan, uma das vítimas de abuso sexual do produtor de Hollywood Harvey Weinstein, apoiou vocalmente Reade e pediu a Biden que encerrasse sua campanha presidencial. Alyssa Milano, uma das líderes do movimento #MeToo, ficou do lado de Biden. "Acreditar nas mulheres nunca foi sobre 'Acredite em todas as mulheres, não importa o que elas digam', é sobre mudar a cultura de NÃO acreditar nas mulheres por padrão".
Críticos de Reade apontam que ela estava apoiando a campanha presidencial de Bernie Sanders em 2020, principal rival de Biden até mês passado. Outros dizem que ela defende interesses russos, porque há alguns anos escreveu postagens em um blog e em uma rede social defendendo o presidente russo, Vladimir Putin. Também citam o fato de Reade ser incapaz de lembra a data exata do suposto ataque e em qual corredor o ataque teria ocorrido, nem a localização precisa do escritório onde ela pegou o formulário necessário para registrar uma reclamação.
Reações divididas
Uma pesquisa de opinião divulgada nesta quarta-feira (6) mostrou que os eleitores americanos também estão divididos. Trinta e sete por cento acredita que a história contada por Reade provavelmente é verdadeira, enquanto 32% acreditam que não é - 31% não sabe. O percentual dos que acreditam em Reade é maior entre os republicanos (50%) e menor entre os democratas (20%), segundo pesquisa de opinião conduzida pela Universidade Monmouth.
Alguns analistas acreditam que apesar de grave, a acusação de assédio sexual não deve ter um grande impacto na campanha presidencial de Biden. “Reade é até agora a única mulher a acusar Biden de agressão sexual. Se nenhum outro surgir, os democratas podem estar inclinados a acreditar em seu candidato do que nela”, escreveu a jornalista da BBC News, Katty Kay.
Soma-se a isso o fato de que Trump foi acusado de assédio sexual por pelo menos 17 mulheres, segundo levantamento feito em 2019 pela ABC News. Na campanha de 2016 veio a público um áudio de 2005 no qual Trump se vangloria por pegar mulheres por suas partes íntimas.
Porém, outros analistas da política americana acreditam que o caso pode sim prejudicar a campanha de Biden. O site Politico escreveu nesta semana que o fato de Biden não pedir a liberação de seus arquivos na Universidade de Delaware pode complicar a situação dele. A campanha de Trump já o acusou de esconder a verdade por causa disso.
Os jornalistas do site especializado também relevaram, com base em pesquisa de opinião e entrevistas com estrategistas democratas, que as acusações de agressão sexual estão complicando os esforços de Biden para para ampliar seu apoio entre a base democrata e unificar o partido. A pesquisa, divulgada terça-feira, mostra que mais de um terço dos eleitores acreditam que os democratas deveriam abandonar Biden como seu candidato.
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