O ditador da Rússia, Vladimir Putin, começou sua carreira no Estado russo como agente da KGB, serviço secreto da União Soviética. Ele trabalhava no escritório da agência na Alemanha Oriental em 1989, quando aconteceu a queda do Muro de Berlim.
Onze anos depois, quando foi eleito pela primeira vez presidente (já exercia o cargo interinamente desde o final de 1999), Putin disse numa reunião com membros do Serviço de Segurança Federal (FSB), uma das agências que substituíram a KGB: “A missão da KGB de se infiltrar no governo russo foi cumprida”.
Ironia ou não, a frase ilustra como o FSB ganharia proeminência dentro do Estado russo durante o reinado de Putin. Perseguindo opositores e ex-aliados do ditador, o órgão ajudou o ex-agente da KGB a consolidar seu poder.
Porém, foi apenas após o começo da guerra da Ucrânia, em fevereiro de 2022, que o FSB venceu o último adversário na sua disputa para dominar totalmente o Kremlin: as Forças Armadas.
Em 2012, prestes a assumir o Ministério da Defesa, Serguei Shoigu, próximo de Putin, havia imposto uma condição: não queria membros do FSB interferindo na pasta.
Essa distância foi respeitada, mas só até o início da guerra na Ucrânia. A princípio, o FSB se aproveitou do conflito para intensificar a repressão à dissidência e vozes críticas no país: uma das prisões de maior repercussão que realizou foi a do jornalista americano Evan Gershkovich, detido em março de 2023 em Ecaterimburgo por acusações de espionagem.
Porém, a sucessora da KGB não parou por aí e passou a se valer das suas funções para ganhar mais poder e vencer a batalha final pelo domínio do Kremlin: este ano, a pretexto de combate à corrupção, membros importantes do Ministério da Defesa da Rússia foram presos.
Em maio, o tenente-general Yury Kuznetsov, então chefe da principal diretoria de pessoal da pasta, foi detido na região de Moscou, acusado de “receber propinas de representantes de estruturas comerciais para realizar certas ações em seu favor”, segundo o Comitê de Investigação da Rússia.
Na casa dele, o FSB apreendeu moedas de ouro, itens de luxo e mais de 100 milhões de rublos (cerca de R$ 6 milhões) em espécie. Sua esposa, que já trabalhou no Ministério da Defesa, também é investigada.
Antes da prisão de Kuznetsov, o caso de maior repercussão havia sido a detenção, em abril, do ex-vice-ministro da Defesa Timur Ivanov, também suspeito de receber propinas.
Em razão das suspeitas sobre a pasta, em maio, Shoigu foi substituído no Ministério da Defesa pelo civil Andrei Belousov. Seus temores de que o FSB poderia ser uma ameaça ao seu cargo se confirmaram.
A ex-KGB forma uma “nova nobreza”, termo que vem sendo usado na Rússia, condição que deu a seus funcionários isenção do serviço militar (para grande fúria de Shoigu), e sua presença no Kremlin, com a benção de Putin, é cada vez maior.
Segundo artigo publicado pelo jornal The Moscow Times no início deste mês, nos últimos anos da União Soviética, apenas 3% dos funcionários em altos cargos governamentais vinham dos serviços especiais. Durante a presidência de Boris Iéltsin (1991-1999), essa participação subiu para pouco mais de 30%; hoje, está entre 70% e 80%.
No capitalismo de compadres que é a economia russa, essa presença não se restringe à política e à segurança, destacou o autor do artigo, o jornalista Andrei Kalitin.
“Funcionários do Ministério da Cultura podem testemunhar que todos os filmes [produzidos na Rússia] são analisados por dois policiais à paisana antes da emissão do certificado de locação. Empresários do setor de matérias-primas podem atestar como o novo conselho de administração inclui oficiais disfarçados do FSB. O trabalho da administração presidencial é controlado pelo Segundo Serviço do FSB (que combate o terrorismo e ‘protege a ordem constitucional’), e o Conselho de Segurança é composto apenas por agentes de segurança”, explicou.
“Parafraseando a frase de Putin de 2000, a Lubianka [como é conhecido o prédio na praça homônima em Moscou onde ficava a sede da KGB, hoje do FSB] se infiltrou na hierarquia de poder do país com mais sucesso do que em qualquer outro momento da história”, escreveu Kalitin. “Ao início do quinto mandato presidencial de Putin [em maio], o FSB tinha vencido.”