A vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, sofreu um revés em sua ofensiva sobre a justiça. Em 3 de novembro, a Suprema Corte do país decidiu que três juízes federais afastados pelo kirchnerismo voltassem aos seus respectivos cargos provisoriamente. Leopoldo Bruglia, Pablo Bertuzzi e Germán Castelli estavam, de alguma maneira, ligados aos processos de corrupção contra Kirchner e pessoas que trabalharam com ela durante sua presidência.
A vice já tinha conseguido removê-los dos cargos que ocupavam via Conselho de Magistratura e uma votação no Senado – ambos os órgãos de maioria oficialista. Mas os juízes recorreram à justiça para evitar isso e conseguiram se manter nos cargos, por enquanto.
A história tem bastante detalhes técnicos e há diferenças entre os casos dos juízes, mas resumidamente: os três – e outros sete – haviam sido transferidos para instâncias superiores por decreto do ex-presidente Maurício Macri. O governo atual, do presidente Alberto Fernández, considerou que essas transferências caracterizavam promoções inválidas por não terem passado pela aprovação do Senado. Em uma sessão na Câmara Alta, os juízes não compareceram e então os senadores governistas aprovaram a transferência deles para os tribunais onde eles trabalhavam antes da promoção. O Conselho de Magistratura da Argentina já estava iniciando um processo para nomear substitutos até que um concurso fosse realizado.
Foi aí que a decisão da Suprema Corte atrapalhou os planos de Kirchner. O máximo tribunal de justiça estabeleceu que os juízes devem continuar em seus cargos provisoriamente até que um concurso seja realizado – um processo que pode levar meses ou até mais de um ano, segundo a imprensa argentina. A Suprema Corte também definiu que as decisões tomadas anteriormente pelos juízes continuam válidas e que eles poderão participar dos concursos para permanecer nos cargos que ocupam.
A justiça, contudo, estabeleceu que o Conselho de Magistratura deve evitar ao máximo promoções por transferência. Apenas o caso de Castelli, que participa do tribunal que deve julgar o maior caso de corrupção contra Kirchner, conhecido como “cadernos de propinas”, tem alguns pontos diferentes, pois sua transferência começará a ser julgada novamente em uma instância inferior e, até uma decisão ser tomada, um concurso para a sua vaga não será aberto.
Kirchner não deve ter ficado feliz com essa decisão que acabou anulando todo o processo de remoção dos juízes no Senado. Além disso, a decisão prejudica o discurso kirchnerista sobre Lawfare, de perseguição política por meio da justiça, que também foi adotado por outros ex-presidentes de esquerda na América do Sul, com Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Rafael Correa no Equador. Para a vice-presidente, os três juízes eram ligados a Macri e foram promovidos de forma irregular para persegui-la. Mas a teoria ficou mais fraca depois da decisão da Suprema Corte, que avaliou que a transferência dos juízes não foi ilegal, mas que possui caráter temporário.
Reforma do MP
Mas este foi apenas um revés para o kirchnerismo. A briga continua e agora parece estar focada na figura do procurador-geral do país. O governo quer tirar do cargo Eduardo Casal, que assumiu como interino durante a gestão Macri e que é visto pelos kirchneristas como um dos participantes da guerra judicial contra Cristina Kirchner. O problema é que, para aprovar um novo procurador-geral, o governo precisa de dois terços dos votos no Senado – uma maioria que o oficialismo não tem. O presidente Alberto Fernández já indicou um nome para o cargo: Daniel Rafecas, mas ele não conta com o apoio da oposição. E há dúvidas sobre se a escolha realmente agradou a vice-presidente.
Para resolver o problema da indicação, o oficialismo está traçando duas estratégias. Uma delas vem do núcleo fiel a Fernández: conseguir o apoio necessário entre os senadores da oposição para que Rafecas seja nomeado. Essa linha ganhou um impulso quando no início deste mês Elisa Carrió, ex-deputada pelo partido de oposição Coalizão Cívica, endossou a indicação. Ela alegou que Kirchner quer colocar uma pessoa mais alinhada a seus interesses no cargo do que Rafecas e por isso a oposição deveria apoiar o nome indicado pelo presidente.
A outra estratégia vem do núcleo kirchnerista mais duro: alterar a lei orgânica do Ministério Público para que seja necessário apenas uma maioria simples (50% mais um) para aprovar ou rejeitar um procurador-geral. Oscar Parrilli, senador próximo à Cristina Kirchner, colocou em discussão na comissão de justiça do Senado um projeto sobre a lei que rege o MP argentino, que havia sido proposto pela oposição no ano passado e que não prevê esta alteração da maioria. Isso, contudo, não impede que o texto seja alterado para incluir a demanda kirchnerista.
Outro projeto de reforma da lei do MP foi apresentado nesta semana pelo senador kirchnerista Alberto Weretilneck. Este, sim, prevê baixar a quantidade de votos necessários no Senado para aprovar a indicação do presidente para o cargo de procurador-geral, passando da maioria absoluta para a maioria simples. Também tornaria mais fácil a demissão de procuradores e fixaria um mandato de cinco anos, renovável por mais cinco para o cargo de chefia do MP – o que pode pôr em xeque a autonomia do ocupante do cargo, que precisará do aval dos políticos para permanecer na posição por mais cinco anos.
Por que as duas alas do governo estão preferindo caminhos diferentes? Alguns dizem que é que para ter mais opções para a aprovação de Rafecas, outros afirmam que é porque Kirchner não concorda com este nome. Essa suspeita vem do fato de que os kirchneristas estão forçando o caminho para mudar a regra da maioria na votação do Senado mesmo que Rafecas tenha declarado publicamente que declinaria da indicação se isso ocorresse. “Se o requisito de dois terços for modificado, não estou disposto a assumir”, disse o nomeado de Fernández em outubro. Uma senadora kirchnerista afirmou dias depois que “nem Daniel Rafecas, nem Elisa Carrió e nem ninguém vai nos condicionar”, ao falar sobre a intenção da ala em levar adiante a reforma sobre o MP.
A discussão promete ficar ainda mais acalorada quando o Conselho Consultivo, estabelecido por Fernández para orientar a reforma judicial proposta pelo governo, anunciar suas conclusões na próxima quarta-feira (18). De acordo com o jornal argentino Página 12, mudar as maiorias para a designação do procurador-geral é uma das várias propostas que estão sendo debatidas.