A reforma judicial proposta pelo governo de Alberto Fernández na Argentina ganhou um novo componente para satisfazer o núcleo kirchnerista mais duro. O senador Oscar Parrilli, aliado da vice-presidente Cristina Kirchner, propôs uma emenda ao projeto de lei, a qual tem o potencial de abrir a porta para a censura à imprensa.
A emenda prevê a inclusão da palavra “midiático” no seguinte artigo: os juízes devem “comunicar imediatamente ao Conselho Nacional de Magistratura sobre qualquer tentativa de influenciar suas decisões por poderes políticos, econômicos ou midiáticos, membros do Poder Judiciário, Executivo ou Legislativo, amigos ou grupos de pressão de qualquer natureza, e solicitar o medidas necessárias para sua proteção”.
“Vimos nos últimos anos nos meios de comunicação como os jornalistas insultaram e até mesmo encorajaram a sair para protestar contra, denegrir e desacreditar diferentes funcionários judiciais por não terem feito o que aquele meio pretendia com determinado processo ou causa. Aqui é preciso acrescentar explicitamente o termo mídia porque isso tem acontecido nos últimos tempos”, justificou Parrilli.
A proposta rapidamente despertou críticas da oposição e de organizações ligadas à imprensa. Segundo o jornal Clarín, a Sociedade Interamericana de Imprensa expressou sua preocupação com o fato de que “pretende-se por lei imputar poderes fáticos aos meios de comunicação e restringir a liberdade de imprensa, ignorando o que sua própria Constituição dita sobre esses conceitos”. O Fórum de Jornalismo Argentino emitiu um comunicado dizendo que a alteração é “uma nova tentativa de setores políticos ligados ao governo para avançar contra a liberdade de expressão e promover o silenciamento jornalístico”. A Associação de Entidades Jornalísticas da Argentina (Adepa), que reúne as empresas de mídia do país, afirmou que “a surpreendente incorporação desta cláusula parece responder a um objetivo de retaliação ao trabalho da imprensa em casos de corrupção nos últimos anos”.
“Se supõe que [este artigo] vai resguardar a independência dos juízes, mas é algo muito amplo e muito arbitrário, não estabelece nenhum tipo de requisito”, disse Flavio González, professor de Direito de Integração da Universidade de Buenos Aires (UBA), à Gazeta do Povo. Ele lembrou também que o texto do projeto foi escrito tendo-se em mente o discurso kirchnerista sobre Lawfare, de perseguição política por meio da justiça - o mesmo adotado pela esquerda na América do Sul, com Lula no Brasil, Correa no Equador e Morales na Bolívia.
Andrés Gil Domínguez, advogado constitucionalista que faz parte da comissão que está assessorando o presidente Alberto Fernández na reforma judicial, disse no fim de semana que o “agregado” de Parrilli é “uma forma de instalar um mecanismo de censura indireta” que “vai contra à proteção constitucional da liberdade de expressão”.
“Do ponto de vista constitucional é uma violação da liberdade de expressão, mas do ponto de vista político é preocupante porque se afasta do projeto encaminhado pelo presidente e obscurece os demais aspectos da reforma que são muito valiosos”, afirmou em entrevista a uma rádio argentina.
Quando Parrilli apresentou a emenda, na semana passada, a imprensa argentina informou que Fernández não estava por trás da alteração e até que não estaria de acordo. Porém, no fim de semana, ele veio à público minimizar os efeitos da mudança proposta. “Eles acrescentaram esse ponto sobre o poder da mídia. Acho que tem um sentido mais casuístico porque está incluído no conceito de poder econômico, mas na verdade não muda o significado do texto em nada”.
Há, de fato, uma briga interna na coalizão oficialista, um descontentamento do núcleo kirchnerista mais duro com a gestão de Fernández. Integrantes do Instituto Pátria, fundado por Kirchner, disseram nesta semana que a ministra da Justiça, Marcela Rosardo, não está se esforçando para defender a reforma judicial, tampouco as mudanças que foram feitas no Senado. Ela é alinhada ao presidente, com quem trabalha há anos, enquanto o fiel de Kirchner, Juan Martín Mena, teve que se contentar com o segundo cargo mais importante da pasta. Contudo, segundo González, são pequenas rixas que não devem escalar para um conflito maior devido à dependência política que o presidente tem de Cristina Kirchner.
Tramitação
O projeto de reforma judicial deve ser votado pelo Senado nesta quinta-feira (27) e, com a maioria peronista na casa, tudo indica que ele será aprovado com facilidade. O desafio do governo será na Câmara dos Deputados, dominada pela oposição - lá o trâmite será bem mais lento do que no Senado.
A emenda de Parrilli veio dificultar as negociações, assim como os recentes comentários de Alberto Fernández sobre o ex-presidente Maurício Macri. No fim de semana, o atual presidente afirmou que Macri teria dito a ele, em uma conversa particular sobre a pandemia, que não decretasse um lockdown e que “aqueles que têm que morrer, que morram” - Macri negou ter feito o comentário. Fernández também também foi bastante criticado por sua insensibilidade ao afirmar que a Argentina "se saiu melhor com o coronavírus do que com o governo de Mauricio Macri" em termos de desemprego.
Esses comentários o colocaram em maus lençóis com a oposição. Até mesmo o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, que estava evitando se opor ao governo federal para manter uma parceria por causa da pandemia, abaixou a bandeira branca e rechaçou a pressa com que a reforma vem sendo tratado no Congresso. Embora considere necessária, a oposição vê na reforma judicial proposta por Alberto Fernández uma maneira de livrar Cristina Kirchner das acusações criminais por corrupção que pesam contra ela e sua família. Uma petição contra o projeto já tem mais de 100 mil assinaturas.
Protestos
Manifestantes contrários à reforma judicial estão reunidos na Praça do Congresso, em Buenos Aires. Nesta quarta-feira (26), eles foram proibidos de montar uma barraca e instalar banheiros químicos no local. Segundo o governo, o objetivo é não fomentar aglomerações em período de isolamento social. Manifestantes, por sua vez, afirmaram que as autoridades temem os protestos.
O protesto teve início por volta das 16h, quando cerca de 50 pessoas chegaram à Praça do Congresso com faixas e gritando palavras de ordem. Um jornalista chegou a ser agredido e precisou ser protegido por policiais. Perto das 18h já havia cerca de 200 manifestantes no local.
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