Tel Aviv "Há algo de errado no reino de Israel". Foi parafraseando Shakespeare que o veterano apresentador Haim Yavin, há 30 anos o rosto mais famoso da tevê israelense, iniciou o tradicional telejornal noturno do Canal 1 na quarta-feira. Horas antes, todas as tevês e rádios do país haviam transmitido, ao vivo, um furioso discurso de 45 minutos do presidente Moshe Katsav no qual ele tentou se defender das mais graves acusações já feitas a um político israelense, que incluem estupro e assédio sexual de quatro ex-funcionárias. O comentário do apresentador, no entanto, não se referia apenas ao presidente, que acabou sendo afastado temporariamente do cargo.
Uma série de escândalos envolvendo a cúpula da liderança israelense tem agitado o país. O resultado é uma crise de credibilidade sem precedentes no governo e em instituições como o Parlamento, as Forças Armadas e a Receita Federal.
"A sensação é a de que a maioria dos políticos passou a colocar o bem-estar pessoal antes do público. Não há transparência nem se assume responsabilidade em caso de erro. Isso pode ser normal em outros países, mas aqui é novidade, principalmente na escala atual", afirma o advogado Michael Parten, vice-presidente do Movimento para a Melhoria do Governo, ONG que se destaca por exigir na Justiça a renúncia de líderes corruptos, ineficientes ou, no caso do presidente, indecorosos ao extremo.
No topo da lista da ONG está o primeiro-ministro Ehud Olmert, envolvido em diversos casos de corrupção e tráfico de influência. Olmert, cuja popularidade atualmente é de meros 14%, também está sob investigação por ineficiência na condução da guerra com a guerrilha libanesa Hezbollah, em julho do ano passado, visto pela maioria dos israelenses como uma das maiores derrotas militares do país desde a criação do Estado judeu, em 1948.
Junto com ele na investigação, o ministro da Defesa Amir Peretz e o ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas Dan Halutz que renunciou na semana passada sob forte pressão do público, abalado por uma sensação de insegurança diante da aparente fragilidade do exército. Outros escândalos recentes envolvem o ex-ministro da Justiça Haim Ramon, que renunciou sob acusação de assédio sexual, e o secretário da Receita Federal, Jacky Matza, em prisão domiciliar por suspeita de concessão de benefícios a empresários (caso que também envolve a secretária do escritório do primeiro-ministro, Shula Zaken).
A multiplicação dos casos se reflete nas pesquisas de opinião. Na quinta-feira, o maior jornal do país, o Yedioth Aharonot, divulgou que 71% dos israelenses desejam a renúncia imediata de Moshe Katsav da presidência, cargo que, apesar de meramente cerimonial, é respeitado pelo povo.
As pesquisas são mais do que um sinal dos tempos. Ehud Olmert não é o único primeiro-ministro israelense a ser investigado (Ariel Sharon, Ehud Barak e Benjamin Netanyahu também enfrentaram acusações de corrupção). Portanto, há mais de uma década o público acompanha inquéritos de líderes que deveriam estar acima de qualquer suspeita. Não é à toa que o grau de credibilidade da liderança como um todo tenha caído. Isso explicaria por que, apesar dos escândalos atuais, poucos israelenses têm tomado as ruas em protestos.
"A expectativa das pessoas em relação aos políticos mudou", analisa Reuven Hazan, professor de ciências políticas da Universidade Hebraica de Jerusalém. "Nas décadas de 50, 60 e 70, quando o entusiasmo da criação do Estado judeu ainda estava no auge, os históricos líderes nacionais como David Ben Gurion e Golda Meir criaram a imagem de políticos identificados com o povo, que se sacrificavam pelo bem geral. Agora, política é sinônimo de corrupção e cinismo. O novo conceito tornou os israelenses um tanto apáticos e indiferentes", continua o professor.
Para Hazan, o processo que levou a atual crise de confiança começou na década de 80 e foi causado por três fatores: o fim do monopólio da imprensa estatal, a abertura da economia nacional e a modificação das leis eleitorais. No caso da imprensa, a criação de canais de tevê privados alimentou a sede por revelações picantes sobre o alto escalão. "A liberdade de expressão ajudou a criar uma sensação de podridão por vezes exagerada", opina Hazan.
Em termos econômicos, a globalização deixou sua marca em Israel com o enriquecimento de poucos principalmente na área de alta tecnologia às custas do empobrecimento de muitos. Hoje, uma em cada quatro famílias israelenses vive abaixo da linha de pobreza, o que evidencia o fracasso das políticas sociais nas últimas duas décadas. São mais de 1,6 milhão de pobres em meio a uma população de 7 milhões. Finalmente, a busca por fortuna num mundo globalizado acabou se misturando com política após a criação de leis eleitorais que incentivam candidatos a buscarem financiamento milionário para suas campanhas eleitorais. "É dessa simbiose entre capital e política que nasceram os principais escândalos de corrupção dos últimos anos", analisa o professor da Universidade de Jerusalém.
Mas, apesar de todas as críticas, muitos israelenses encontram certo consolo no fato de que os escândalos estão sendo investigados pela polícia e analisados pela Procuradoria-Geral de Justiça. Isso denotaria que pelo menos não há impunidade no país. "O episódio do presidente Katsav provou que o sistema imunológico israelense ainda está funcionando e é capaz de vomitar o mau que existe dentro da sociedade", analisa o jornalista Ari Shavit, do jornal Haaretz. "Mas só quando outros casos de corrupção forem completamente esclarecidos saberemos se Israel está começando a se purificar", completa Shavit.