Sob um forte esquema de segurança, líderes de países-membros do G20 já começaram a desembarcar na Argentina para a cúpula de dois dias entre as maiores economias do mundo, que começa nesta sexta-feira (30). Esta é a primeira vez que o encontro ocorre em um país da América do Sul e também marcará a primeira vez que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pisará em solo sul-americano – no início do ano o republicano cancelou sua participação na Cúpula das Américas, realizada no Peru.
Na agenda oficial do encontro econômico, a anfitriã Argentina elencou três temas centrais: infraestrutura, segurança alimentar e futuro do trabalho. São assuntos que frequentemente estão presentes em encontros multilaterais e que agora, superada a crise econômica mundial de 2008, ganham destaque no G20.
Mas são as tensões geopolíticas que devem dominar as atenções durante os dias de evento. Trump e o presidente chinês Xi Jinping vão se encontrar no sábado e o assunto a ser tratado não poderia ser outro: a guerra comercial travada entre os dois países. Existe uma expectativa, ainda que pequena, de que eles possam dar início a um processo de negociação para que não haja mais uma rodada de aumento de tarifas, de ambas as partes, no início ano que vem. Mas em se tratando de Trump é difícil prever o que vai ocorrer.
Um exemplo disso foi o cancelamento da reunião com Vladimir Putin, presidente da Rússia, poucas horas depois que o Kremlin havia confirmado o encontro durante a cúpula do G-20.
“Baseado no fato de que os navios e marinheiros não foram devolvidos da Rússia à Ucrânia, decidi que seria melhor para todas as partes envolvidas cancelar meu encontro previamente marcado na Argentina com o presidente Vladimir Putin. Aguardo ansiosamente por uma cúpula significativa de novo tão logo esta situação esteja resolvida”, informou Trump, pelo Twitter, enquanto estava a bordo do Air Force One a caminho de Buenos Aires.
O presidente se referiu à recente escalada de tensões entre Ucrânia e Rússia, que em 25 de novembro atacou e apreendeu três embarcações ucranianas no Estreito de Kerch alegando que o país vizinho estava invadindo suas águas - apesar de que em 2003 Rússia e Ucrânia assinaram um tratado estabelecendo que o estreito, bem como o Mar de Arzov que separa a Crimeia e a Rússia, era uma área livre para navegação.
Putin e Trump discutiram o tratado de armas nucleares entre as duas potências, um acordo que o presidente americano já ameaçou abandonar alegando violações por parte da Rússia.
No G20 Trump também será um dos protagonistas da assinatura do novo Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), tratado comercial entre Estados Unidos, México e Canadá, que será rebatizado como Umsca (Acordo Estados Unidos-México-Canadá).
Outra presença de destaque é o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman (MBS), que foi citado pela CIA, a agência de inteligência americana, como provável mandante do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, colaborador do Washington Post e crítico de MBS. Ao que tudo indica, ele não deve se encontrar com Trump durante a cúpula do G20.
Cientistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo acreditam que a participação brasileira no G20 será reduzida neste ano devido à transição de governo. O Itamaraty informou que convidou o presidente eleito Jair Bolsonaro a fazer parte da comitiva que atenderá o evento, mas ele rejeitou a oferta por problemas de saúde que resultaram do atentado que sofreu durante a campanha eleitoral.
Mas há muito mais em jogo para o anfitrião Mauricio Macri do que para o brasileiro Michel Temer. Ao sediar o evento, o presidente da Argentina tem dois objetivos bem claros: melhorar a imagem do país frente a investidores internacionais, em meio a uma crise que se agravou nos últimos meses e protestos da população que desaprova seu acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI); e conseguir fazer com que o evento seja um sucesso para tirar algum proveito disso nas eleições presidenciais de 2019, quando buscará seu segundo mandato.
De olho na guerra comercial
Em 6 de julho deste ano entraram em vigor as novas - e mais altas - tarifas americanas para produtos chineses. A retaliação foi imediata, dando início a uma guerra comercial entre Estados Unidos e China que, desde então, só piorou. Em setembro, o presidente Donald Trump anunciou o aumento de 10% sobre as tarifas de importação de US$ 200 bilhões em produtos chineses. O presidente Xi Jinping não deixou por menos e subiu as alíquotas de até 10% para US$ 60 bilhões em importações americanas.
Os movimentos das duas principais economias mundiais modificaram profundamente o cenário do comércio mundial e é exatamente por isso que o ponto mais importante da cúpula do G20 será a reunião bilateral entre China e Estados Unidos. A grande questão que todos querem saber é: Trump e Xi serão capazes de chegar a um acordo para, ao menos, interromper a escalada da guerra comercial?
De acordo com funcionários de ambos os governos, ouvidos pelo Wall Street Journal, China e EUA estão trabalhando em um pacto comercial que impediria que os EUA elevassem ainda mais suas tarifas sobre os produtos chineses - o que Trump tem ameaçado fazer já no início de 2019, aumentando as alíquotas para 25% - em troca de novas conversas visando maiores mudanças nas políticas econômicas de Pequim, incluindo proteção para propriedade intelectual.
Segundo o jornal, os dois governos querem o fim da guerra comercial, mas Trump tem usado de suas técnicas de negociador para pressionar o outro lado da mesa.
Antes de embarcar para Buenos Aires nesta quinta-feira, o presidente americano postou no Twitter: “Bilhões de dólares estão entrando nos cofres dos EUA por causa das tarifas que estão sendo cobradas da China, e há um longo caminho a percorrer. Se empresas não querem pagar tarifas, fabriquem nos EUA. Do contrário, apenas deixem nosso país mais rico do que nunca”.
Ele também havia dito, nesta semana, que é “bastante improvável” que um acordo firmado com Xi durante o G20 impeça a elevação de tarifas de 10% para 25% no início de 2019. E ainda ameaçou novas tarifas sobre mais uma lista de bens chineses.
Os analistas de política internacional ouvidos pela Gazeta do Povo acreditam que, com essa aparente falta de vontade de Trump e sua política de confronto na política externa, o encontro com Xi tem mais chances de dar em nada.
Além do ponto de vista das balanças comerciais, há uma aparente disputa para a supremacia global. O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e presidente da Associação de Estudos de Defesa, Alcides Costa Vaz, lembra que, o fato de a cúpula ser na América do Sul salientou a crescente presença da China na América do Sul, uma região pela qual os Estados Unidos perderam o interesse sob a administração Trump.
Em entrevista para a Gazeta do Povo em outubro, Tom Harper, pesquisador do doutorado em política da Universidade de Surrey (Reino Unido), avaliou que, à medida que a influência da China aumentar, a América Latina tende a ser uma “nova arena” de conflitos com os Estados Unidos. “É provável que as já conflitivas relações entre Washington e Pequim sejam impactadas, já que o primeiro percebe que as iniciativas chinesas violam a Doutrina Monroe e tem visto os avanços asiáticos inevitavelmente às expensas dos interesses e da influência norte-americanos”.
Pauta oficial e a relevância para o Brasil
A participação do Brasil na cúpula do G20 deve ser bem tímida. Cientistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo acreditam que o presidente Michel Temer, enfraquecido por estar no fim de seu governo, não terá condições de firmar compromissos futuros com os demais líderes. Prova disso é a ausência de encontros bilaterais paralelos com outros líderes mundiais.
“A capacidade do Temer de ter algum impacto na cúpula é muito reduzida”, disse Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Para ele, é mais provável que a equipe de assessores do presidente eleito que vai atender ao evento tenha mais relevância do que a própria comitiva oficial.
O cientista político Arnaldo F. Cardoso levanta a possibilidade de que talvez o presidente Temer aja, durante a cúpula, no sentido de “pavimentar o caminho do próximo governo”, como fez recentemente ao anunciar que o Brasil havia desistido de sediar a COP-25 (Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas) em 2019, destinada a negociar a implementação do Acordo de Paris.
“Oficialmente o governo brasileiro alegou questões orçamentárias para explicar a desistência de algo que ele mesmo havia proposto. Mas com isso, Temer criou uma situação mais favorável ao próximo governo brasileiro no que diz respeito a assumir menos compromissos ambientais”, explica Cardoso, que é professor de Comércio e Relações Internacionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie, lembrando que Bolsonaro havia sugerido, durante a campanha eleitoral, que tiraria o Brasil do Acordo de Paris, à exemplo de Trump nos EUA. O próprio Bolsonaro admitiu, em entrevista, que houve a participação dele nesta decisão do governo Temer.
Apesar de uma presença apagada, a agenda oficial da cúpula do G20 traz temas de muita relevância para o Brasil, a começar pelo “futuro do trabalho”, que, segundo Cardoso, tem relação direta com investimentos em tecnologia de automação de processos industriais.
“Há a tendência do processo de automação em setores da indústria, com potencial para fechar até 14 milhões de postos de trabalho até 2025. Para que uma parte desses efeitos negativos da automação no mercado de trabalho seja compensado, depende muito da qualidade da negociação entre os países detentores da tecnologia e os países em desenvolvimento para que haja uma transferência de tecnologia ao país em vez da simples compra”, afirma Cardoso, que é professor de Comércio e Relações Internacionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Ele conclui dizendo que, se forem feitas negociações de transferência de tecnologia que contemplem interesses brasileiros, elas poderiam gerar empregos em outras áreas, com melhor qualificação da mão de obra, reduzindo os impactos negativos da automação no mercado de trabalho.
Segurança alimentar e infraestrutura também são assuntos de grande importância para o Brasil, dado o peso do país no mercado mundial de alimentos e a grande necessidade de investimentos em infraestrutura logística.
A cúpula do G20 ocorre desde 2008 e é um dos fóruns mais importantes no que diz respeito à economia e crises globais. Reúne as 19 maiores economias mundiais (África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia) e a União Europeia, que são responsáveis por 85% do produto bruto global, 75% do comércio internacional e 80% dos investimentos para o desenvolvimento de pesquisa em todo o mundo.