Jornalistas detidos, médicos ameaçados e casas de dirigentes políticos pichadas com ofensas. Tudo em meio ao aumento do número de casos de Covid-19 e com o incentivo da ditadura de Nicolás Maduro, que, em março, anunciou o início da Fúria Bolivariana.
Desde o começo da pandemia, a quantidade de protestos contra a precariedade da situação sanitária e a falta de insumos aumentou na Venezuela e o regime de Maduro respondeu ampliando a perseguição até a venezuelanos que regressam ao país por causa da Covid-19. As táticas de perseguição denunciadas mostram um padrão adotado desde pelo menos 2014: aumentam os protestos e o regime inicia uma campanha contra "influências externas" que resulta em ameaças a opositores e jornalistas dentro do país.
Segundo um estudo do Cepaz, entre março e junho, foram notificados ao menos 184 casos de violações de direitos humanos, sendo 92 contra jornalistas, 56 contra opositores políticos, 25 contra profissionais de saúde e 11 contra ativistas dos direitos humanos. Ao longo desses meses, o número de protestos só aumentou: em março foram relatados 580 protestos, em abril, 716 e em maio, 1.075, segundo o Observatório Venezuelano de Conflito Social.
"Vemos pelos relatórios de 2014 e 2017 que os padrões de perseguição atual são os mesmo. Mudam os números, as vítimas e o contexto do país, mas o regime aplica as mesmas técnicas de perseguição: abertura de processos judiciais, censura aos meios de comunicação, destituição de cargos públicos, invasão de residências, retirada de imunidade parlamentar, inabilitação política, usurpação de funções públicas, perseguição a parentes, anulação de passaportes", explica Nicole Hernández, responsável pela área de investigação do Cepaz.
O uso de meios de comunicação para ameaçar e ofender quem se opõe aos planos da ditadura de Maduro é citado no documento nos três anos: 2014, 2017 e 2020. No atual contexto da pandemia, Diosdado Cabello, o presidente da Assembleia Constituinte da Venezuela e principal aliado de Maduro, anunciou em cadeia nacional, em março, o início da Fúria Bolivariana. A medida seria uma reação às declarações americanas sobre a situação política na Venezuela, mas se tornou uma forma de perseguir com o aval do Estado.
Após o anúncio da medida, pelo menos 42 casas de opositores políticos amanheceram com pichações de ameaças: "vamos atrás de você", "marcamos sua casa e sabemos quem é sua família", "você vai morrer" - em comum, vinha a descrição "fúria bolivariana". Sob a mesma justificativa e usando o contexto da pandemia do novo coronavírus, uma operação foi realizada em março no edifício onde mora Juan Guaidó, presidente interino da Venezuela reconhecido por mais de 50 países. Seu governo diz que a perseguição afetará a eleição parlamentar, prevista para dezembro, citando "o roubo de partidos políticos".
Em agosto, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) emitiu sentenças suspendendo as diretorias dos principais partidos de oposição: Ação Democrática, Um Novo Tempo, Primero Justicia e Voluntad Popular. A medida foi ampliada até para partidos considerados aliados: o Pátria para Todos e o Tupamaro - que tinham alianças com o Partido Socialista Unido da Venezuela(PSUV) desde Hugo Chávez.
Jornalismo
Se antes os alvos da ditadura chavista eram acusados de articular com os Estados Unidos para desestabilizar o regime de Maduro, agora as acusações são de que eles articulam para disseminar o medo e notícias falsas sobre a situação do coronavírus no país.
Desde 16 de março, quando foi decretado estado de emergência na Venezuela em razão da Covid-19, pelo menos 26 jornalistas foram detidos, segundo as denúncias, por cobrirem protestos e divulgar números da pandemia. Foi o caso do locutor da rádio 1300 Am Darvinson Rojas, preso durante 12 dias.
Além de detenções, jornalistas são impedidos de circular, têm seu material apagado dos celulares e assistem aos veículos onde trabalham serem bloqueados ou fechados - 13 casos foram registrados no período.
"Como jornalista da área política, acabei vivendo as consequências de estar em um país sob um regime autocrata, que mata jornalistas e fecha meios de comunicação", diz Daniel Lara Farías, de 40 anos, ao Estadão. Ele fugiu da Venezuela em 2017 após sofrer perseguições e tentativas de assassinato. O modo como foi ameaçado se repete hoje, em um contexto diferente.
"Em 2013, sofri o primeiro atentado cobrindo uma manifestação sobre a fraude eleitoral após a morte de Chávez. Em 2014, sofri meu segundo atentado. Me esperaram sair da emissora e me bateram com um taco de beisebol na cabeça. O terceiro atentado sofri duas semanas antes de deixar a Venezuela, quando, saindo de minha casa, um carro não identificado tentou me atropelar", lembra o venezuelano, que atualmente mora na Alemanha e continua trabalhando em meios venezuelanos. Em 2019, a rádio em que atuava foi fechada.
Segundo Nicole, desde 2014 a insatisfação da população aumenta. "Era um momento de protestos, com lideranças opositoras ganhando força, como Leopoldo López, isso despertou a repressão. Agora, a população está cansada. Não tem gás, não tem serviços públicos, então sai para protestar e vem novamente a repressão."
Ainda assim, o professor venezuelano Erik del Bufalo explica que está difícil ver um cenário de mudança. "As pessoas aqui estão lutando para sobreviver, para ter comida todo dia e isso faz com que não prestem atenção ao que está acontecendo no mundo político. O povo está cada vez menos politizado, principalmente nos últimos dois anos. Isso é terrível."
Questão sanitária
Além das denúncias de irregularidades no processo eleitoral, a preocupação de entidades de ajuda humanitária e do governo de Juan Guaidó é com a falta de protocolos de higiene por parte do Conselho Nacional Eleitoral para evitar a propagação do coronavírus durante a votação, em decorrência da atual situação sanitária no país. Até o dia 11, 92% da população sofria com cortes de energia e 73% com cortes de água. Segundo o Cepaz, durante o processo de cadastro eleitoral não há distanciamento físico de segurança, os funcionários dividem equipamentos, quem integra os grupos de risco da Covid-19 não recebe opções de atendimento diferenciado e não é respeitado o uso de luvas, máscaras e álcool em gel.
Segundo a embaixadora de Guaidó no Brasil, María Teresa Belandria, o governo interino determinou o pagamento de US$ 100 a 62 mil profissionais da saúde na Venezuela por três meses, com dinheiro de contas venezuelanas nos EUA, para que possam ter melhores condições de trabalho. Atualmente, 78% dos profissionais relataram falta de sabonete e álcool em gel, 61% de máscaras e 48% de luvas.
Segundo dados da ditadura, a Venezuela tem mais de 40 mil casos e 337 mortes por Covid-19. Maduro anunciou que o país participará da fase 3 da vacina russa Sputnik V.
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