Nicolás Maduro passou um pequeno susto em sua cerimônia de posse como presidente da Venezuela em abril de 2013. Um homem, vestido com uma camiseta vermelha, se aproximou dele e tomou o microfone de suas mãos. “Nicolás”, ele gritou, antes de ser removido do prédio da Assembleia Nacional, onde ocorria o evento. Ao reiniciar o seu discurso, Maduro disse: “Falhou a segurança, absolutamente… Poderiam ter me dado um tiro aqui”.
O episódio é curioso se comparado à atual situação do regime chavista. Uma cena como esta seria inimaginável neste 10 de janeiro, dia em que Maduro será juramentado para um segundo mandato presidencial. O ditador considera-se alvo de um plano perverso coordenado pelos Estados Unidos, com a ajuda de Brasil e Colômbia, para derrubá-lo do poder. A paranoia começou a aumentar desde abril de 2018, quando o regime acusou a oposição e o então presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, de ter orquestrado um suposto ataque a bomba contra o líder chavista. Isso leva a crer que a segurança da cerimônia desta quinta-feira será bastante reforçada.
Maduro, entretanto, enfrenta ameaças mais reais do que um improvável atentado contra sua vida. Ele será juramentado para um novo mandato, mas seu regime ditatorial vai enfrentar mais problemas do que ele gostaria.
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Enigma na Assembleia Nacional
A Constituição venezuelana prevê que o presidente eleito seja empossado pela Assembleia Nacional (AN), o legislativo unicameral do país, mas isso não vai ocorrer nesta quinta-feira (10).
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Maduro será juramentado perante o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) - instituição alinhada ao regime - segundo informou Maikel Moreno, presidente do TSJ. Apesar de todos os eventos antidemocráticos que levaram a este momento, o juramento perante os magistrados está previsto na Constituição. “Se, por qualquer motivo, o Presidente ou Presidenta da República não puder tomar posse perante a Assembleia Nacional, o fará perante o Supremo Tribunal de Justiça”, descreve o artigo 231 da Carta Magna.
Isso se dá por dois motivos. De um lado, o regime considera que a AN está em desacato e suas decisões não têm validade alguma - motivo pelo qual Maduro convocou uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC), alinhada ao chavismo e que atua como órgão máximo no país desde 2017. Do outro, a nova mesa diretora da AN, sob a presidência do deputado de oposição Juan Guaidó, do Voluntad Popular, declarou que não vai reconhecer Nicolás Maduro como presidente da República, argumentando que o pleito eleitoral que culminou nas votações de 20 de Maio de 2018 foi repleto de irregularidades e fraudes.
(Aqui cabe contextualizar: as decisões da AN, desde 2016, não valem nada para o regime, mas seus membros continuam atuando normalmente. A partir de 10 de janeiro ela será considerada por boa parte da comunidade internacional como o único órgão legítimo e democraticamente eleito da Venezuela.)
“Não estamos vivendo algo que está previsto na Constituição, estamos em uma situação de força e de sequestro de instituições. Na Venezuela há um vácuo de poder há um ano. Em 10 de janeiro, o que vai acontecer é uma usurpação de poder”, afirmou Guaidó em entrevista ao canal Vivo Play nesta terça-feira (8).
Parte da comunidade internacional respalda a postura da Assembleia Nacional, o que tem motivado a oposição. Estados Unidos, Grupo de Lima, Organização dos Estados Americanos (OEA) e União Europeia, por exemplo, não vão reconhecer o novo mandato de Maduro. Mas como lembra Miguel Latouche, doutor em Ciências Políticas e professor na Universidade Central de Venezuela, a questão é mais complexa do que pode parecer em um primeiro momento, “porque a declaração de desconhecimento de um presidente sem apoio político e militar suficiente para torná-la efetiva não significa nada além de uma manifestação de vontade daqueles que não querem Maduro no poder”.
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Foi por esse motivo que a Assembleia Nacional descartou a possibilidade de recorrer ao artigo 233 da Constituição, que prevê que o presidente da AN pode se juramentar presidente da República de forma interina e convocar novas eleições - uma hipótese que chegou a circular na imprensa local. Nesta terça, durante a primeira sessão legislativa do ano, o deputado do Primero Justicia Juan Miguel Matheus reconheceu que a AN não tem condições de fazer isso. “Maduro usurpa o poder em um trono de baionetas (...) não se trata de colocar o presidente da AN em um trono fictício por 30 dias, porque todos nós sabemos que em 30 dias eles não poderão convocar eleições livres”, disse Matheus.
O que se sabe por enquanto é que a oposição vai criar um conselho de transição por meio de um anteprojeto que foi apresentado ao legislativo na primeira sessão do ano, nesta terça-feira (8). “O conselho de transição será articulado à comunidade internacional, ao povo da Venezuela e a todos os homens e mulheres que… querem servir à causa da libertação”, afirmou Matheus, autor do projeto de lei.
Esta não é uma ideia nova, entretanto. Segundo informou o jornal venezuelano El Nacional, em 17 de maio de 2017 foi criada uma comissão de garantias para a transição, cujo objetivo era construir condições para tal. Entre os membros desta comissão estavam os deputados Julio Borges, hoje em exílio na Colômbia, Freddy Guevara, refugiado na residência do embaixador chileno em Caracas desde novembro de 2017, e Juan Pablo García, quem explicou ao jornal venezuelano que a comissão nunca funcionou “porque não havia vontade política do presidente da Assembleia (na época Julio Borges)”.
A boa notícia é que, desta vez, a oposição parece estar mais alinhada do que estava há um ano. A eleição de Juan Guaidó para a casa legislativa, por unanimidade, é uma demonstração de que eles estão deixando de lado suas diferenças ideológicas e interesses pessoais para buscar um diálogo mais coerente e unificado. “A oposição está unida pela primeira vez em muito tempo. Esta situação representa uma grande oportunidade para a oposição venezuelana que nos últimos meses foi muito fragmentada”, afirmou o professor de Negócios Globais na Faculdade Saint Mary's da Califórnia (EUA) e pesquisador da política venezuelana, Marco Aponte-Moreno. Resta saber se terá fôlego e competência para reconquistar o apoio da população, abatida pela fome, e administrar a queda de braço com Maduro.
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Mas enquanto a oposição busca uma forma de derrubar o regime chavista, Maduro trabalha para acabar de vez com a Assembleia Nacional. Um dos deputados constituintes chegou a propor que a ANC dissolva a AN, por ela estar em desacato, e que se convoque novas eleições parlamentares. “Já basta de lacaios e traidores da pátria”, disse o constituinte Gerardo Márquez.
A proposta não foi adiante (por enquanto), mas a ANC ordenou a investigação de parlamentares opositores por traição à pátria por terem respaldado uma declaração do Grupo de Lima que teria tomado partido da Guiana em uma disputa territorial com a Venezuela. Se condenados, eles poderiam receber uma pena de até 30 anos de prisão - lembrando que imunidade parlamentar não é suficiente para conter as prisões dos inimigos do regime, a exemplo da detenção do deputado Juan Requesens no ano passado.
A declaração do Grupo de Lima à qual se referiu a ANC é a mesma que não reconhece a legitimidade do novo mandato de Maduro. Ela foi assinada pelo Brasil e outros 12 países-membros em 4 de janeiro, sendo que apenas o México ficou de fora. O Grupo de Lima é um organismo internacional criado em agosto de 2017 com o objetivo de abordar a crise da Venezuela. O presidente da ANC e número 2 do chavismo, Diosdado Cabello, apelidou o grupo de “cartel de Lima” e critica a influência “imperialista” dos Estados Unidos sobre estes países.
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Apesar de tudo, Maduro deve continuar no poder
Fazendo outro paralelo com a posse de Maduro em 2013, naquela ocasião, perante a Assembleia Nacional, ele havia dito que o objetivo da “revolução social que está em desenvolvimento no país” era acabar com a pobreza. O que acabou conseguindo, no entanto, foi forçar 13% da população venezuelana a deixar sua terra natal por causa da pobreza, da fome, da doença, da violência e da perseguição política.
Mas, apesar disso tudo, entre os analistas de geopolítica ouvidos pela Gazeta do Povo para esta reportagem, há quase que uma unanimidade sobre o que ocorrerá a partir de 10 de janeiro. Mesmo com todo o otimismo com Juan Guaidó e o aumento da pressão internacional contra o regime, o ditador Nicolás Maduro deve continuar no comando da Venezuela, e provavelmente isso não deve mudar em 2019.
O principal motivo é o apoio das Forças Armadas da Venezuela.
Nesta terça-feira, o ministro da Defesa, Vladimir Padriño López, rechaçou o comunicado do Grupo de Lima e afirmou que intensificará a presença e as medidas de vigilância “em todos os rincões da nação”, uma demonstração pública de lealdade a Maduro. Para o professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Antonio Jorge Ramalho da Rocha, o ministro permanece no controle das Forças Armadas como uma espécie de fiador do regime.
A oposição entende o peso das Forças Armadas nesta disputa. Ao tomar posse com presidente da AN, em 5 de janeiro, Guiadó chamou os militares a aderir ao processo de transição para a democracia. Alguns já abandonaram o regime, mas aparentemente não se uniram para enfrentar Maduro. Especula-se que Padriño López tenha colocado Maduro contra a parede, há cerca de um mês, ao pedir que renunciasse ou aceitasse sua renúncia, segundo uma fonte do governo americano ouvida pelo jornal Washington Post, mas até agora, o ministro segue firme ao lado do ditador - pelo menos aos olhos do público.
Para o regime, segundo Rocha, o maior desafio é controlar as fileiras inferiores das forças armadas. “Estes estão mais próximos à realidade da população local e começam a questionar, muito reservadamente, seus superiores hierárquicos”, explicou o professor, que em seguida lembrou que, porém, “o serviço de inteligência funciona com eficácia e oferece ao regime informações úteis a prevenir insurgências, por meio de instrumentos tão variados quanto a cooptação de lideranças emergentes e a punição de indivíduos críticos ao regime”.
Corroborando o argumento de Rocha, nesta quarta-feira, a Human Rights Watch, em parceria com a ONG venezuelana Foro Penal, publicou um relatório mostrando que os serviços de inteligência e as forças de segurança venezuelanas prenderam e torturaram militares e seus familiares acusados de “conspirar contra o governo”.
Além dos militares, o regime conta com o apoio de milícias. Nesta terça-feira, segundo a Folha de S. Paulo, grupos paramilitares fizeram um juramento simbólico em apoio ao ditador Nicolás Maduro. Com retratos de Maduro e Hugo Chávez, militantes em motos, carros e caminhões, alguns deles armados com fuzis, atravessaram bairros populares de Caracas para apoiar o ditador. “Todo aquele que tem colhões, fuzil na mão, deve enfrentar. Somos combatentes, formados militarmente, armados para este conflito. Sem medo”, afirmou Jorge Navas, chefe de um dos coletivos.
Maduro incentiva esse comportamento. Em dezembro, ele afirmou que a milícia do país conta com 1,6 milhão de membros e que vai “armá-los até os dentes”. O número é três vezes maior do que os “quase 400 mil” membros da Milícia Nacional Bolivariana que o regime havia informado em abril.
Mas não é só em casa que o ditador tem amigos. Como bem lembrou o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Vinícius Rodrigues Vieira, Rússia, China e Turquia são países relevantes que estão apoiando Maduro - em especial a Rússia, que recentemente enviou bombardeios ao Caribe para realização de exercícios militares conjuntos com a Venezuela, gerando críticas dos Estados Unidos e dos países vizinhos. A amizade desses países seria suficiente para barrar qualquer medida de intervenção estrangeira na Venezuela que possa ser proposta na Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo.
“É difícil prever o que vai acontecer, mas dado esse cenário haverá um impasse nos próximos meses entre Maduro e a Assembleia Nacional. Mas considerando os fatores de apoio externo da Rússia e dos militares venezuelano, é Maduro quem ainda dá as cartas na mesa”.
Irregularidades nas eleições de 20 de Maio de 2018
Nicolás Maduro venceu a eleição presidencial de 20 de Maio de 2018 com quase 70% dos votos. A abstenção foi de 54% e a oposição não participou do pleito.
A Rede de Observação Eleitoral da Assembleia de Educação da Venezuela, que desde 2006 atua como observador do processo eleitoral no país com a acreditação do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), apontou que desde a convocatória das eleições alguns aspectos fundamentais para garantir a participação legal, livre e igualitária de cidadãos e organizações políticas, como previsto na Constituição, foram alterados, acarretando grande prejuízo à natureza democrática do processo.
Houve restrição ao direito à livre participação de partidos políticos e cidadãos mediante a aplicação de disposições evasivas com roupagem legal, líderes políticos foram exilados ou presos, tendo assim, seus direitos políticos restringidos.
Maduro também usou a máquina pública a seu favor, algo que é proibido na legislação venezuelana. Chegou ao ponto de ter iniciado sua campanha antes mesmo de as eleições terem sido convocadas pelo CNE, usando os meios de comunicação estatais. Além disso, comprou votos ao fazer entrega de casas e usou o “carnê da Pátria”, uma espécie de bolsa família, como moeda de troca. Antes da votação, diversos meios de comunicação reproduziram um discurso em que o ditador afirmou que “todos os que têm o carnê da pátria precisam votar, é dando que se recebe”. “Estou pensando em dar um prêmio ao povo da Venezuela que saia para votar nesse dia com o carnê da pátria”, continuou ele durante um comício no estado de Anzoátegui.
No dia da votação, mais irregularidades. A rede de observadores nacionais comentou a presença de "pontos vermelhos" nas proximidades e até dentro do centros de votação. Muitos relataram a exigência do carnê da Pátria por parte dos coordenadores do centro, presidentes de mesa e membros do partido PSUV. Além disso tudo, Maduro não permitiu que as eleições fossem acompanhadas por observadores internacionais, como é comum ocorrer em democracias.
Apesar de tudo isso, corre-se o risco de que Nicolás Maduro fique no poder até 2025, quando termina seu segundo mandato.
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