A divulgação de um artigo científico em que pesquisadores chineses descrevem como manipularam embriões humanos numa tentativa de corrigir um defeito genético responsável pela beta-talassemia (uma doença do sangue potencialmente fatal) reacendeu o debate sobre o uso das ferramentas da biotecnologia para alterar o genoma humano, a bioética e os limites da ciência. Publicado na semana passada no periódico científico “Protein & Cell”, o estudo feito com embriões “inviáveis”, isto é, que não resultariam em nascimentos, só conseguiu atingir seu objetivo em quatro dos 81 embriões utilizados. Diante deste resultado, o próprio líder da equipe de cientistas, Junjiu Huang, da Universidade de Sun Yat-sen, em Guangzhou, na China, reconheceu que o experimento foi um fracasso, mas ainda assim defendeu a realização de novas experiências para melhorar a precisão da técnica de edição genética, conhecida como CRISPR/Cas9.

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“Se quisermos fazer isso com embriões normais, precisamos estar perto de 100% (de sucesso)”, disse Huang ao site da revista “Nature”. “É por isso que interrompemos (o experimento). Acreditamos que (a técnica) ainda está muito imatura. Mas queríamos mostrar nossos dados para o mundo de forma que as pessoas soubessem o que realmente aconteceu neste modelo (de experimento) em vez de ficarem apenas falando sobre o que aconteceria”.

Para isso, no entanto, Huang e seus colegas também vão ter que superar as repercussões éticas que o anúncio de seu experimento provocou. No mês passado, a “Nature” já havia publicado um alerta de alguns dos pesquisadores mais proeminentes na área pedindo uma moratória total nos estudos que envolvam a manipulação genética de espermatozoides, óvulos e embriões humanos. “Não somos ratos de laboratório, muito menos algo como um milho transgênico. Por décadas, os países desenvolvidos debateram a modificação de genes em células reprodutivas e se posicionaram contra isso”, disse então ao GLOBO Edward Lanphier, presidente da Aliança para a Medicina Regenerativa e um dos cinco cientistas que assinaram o artigo na revista.

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Para Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), Huang e sua equipe falharam primeiro pela falta de transparência em sua pesquisa, que só ficou sujeita ao escrutínio e à avaliação científica e ética de outros pesquisadores e do público após a publicação pelo periódico “Protein & Cell”. Além disso, ela lembra que, de acordo com a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área devem levar em conta suas implicações éticas e sociais.

“A SBB é uma organização plural e multidisciplinar e, dentro desta pluralidade, nossa posição é que a ciência deve avançar, mas sempre com prudência, para que os procedimentos científicos realmente resultem em benefícios para a Humanidade e evitem malefícios”, diz. “Entendemos a ansiedade dos cientistas e da sociedade para que as pesquisas avancem, mas os experimentos com o genoma humano devem ser feitos com cautela. A ciência deve ser feita com consciência. Ao manipularmos o DNA humano, ninguém sabe ao certo o que pode acontecer. Podemos corrigir um problema e criar vários outros, além de abrir caminho para ideias perigosas de filosofias como a eugenia e criação de ‘super-raças’. Por isso, os processos científicos do genoma humano devem ser feitos com segurança, transparência e controle da sociedade, e os cientistas devem sempre se fazer a pergunta: ‘isso é necessário?’”

Responsabilidade ética

Já Volnei Garrafa, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília e integrante do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, destaca que, quanto a questões de segurança e ética das pesquisas, não existe meio-termo.

“A ética, assim como a ciência, é glacial. Ou seja, diante de um determinado fato, o indivíduo não pode ser 40%, 60% ou 80% ético”, considera. “No caso de pesquisas científicas relacionadas aos limites biotecnocientíficos, sabe-se há algumas décadas que nem tudo que pode ser feito deve ser feito, especialmente por razões de biossegurança identificadas com a própria genômica das gerações que estão por vir. Não se trata de precaução exagerada, mas de responsabilidade ética com relação a procedimentos cujos resultados não são absolutamente seguros e que possam vir a colocar em xeque a vida futura da espécie no planeta. Neste novo território do conhecimento denominado Bioética, é preferível falar em prudência do que em temor. O problema central está no fato de que certas modificações radicais inseridas na estrutura original do genoma humano poderão tornar-se irreversíveis, inviabilizando a reprodução futura da espécie tal como vem acontecendo até hoje. E em uma catástrofe destas proporções, a quem caberá a responsabilidade?”, questiona.