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Marine Le Pen pode realmente se tornar presidente?

Le Pen:terrorismo pode ajudá-la a vencer as eleições | Anne-Christine Poujoulat/AFP
Le Pen:terrorismo pode ajudá-la a vencer as eleições (Foto: Anne-Christine Poujoulat/AFP)

Apesar de tudo o que se diz sobre o escândalo envolvendo Fillon, as grandes perspectivas de Emmanuel Macron ou a ascensão tardia de Jean-Luc Mélenchon, a maior parte dos comentários sobre as eleições francesas ainda basicamente se resume a uma preocupação: será que Marine Le Pen pode realmente se tornar presidente?

Tantos nos bate-papos casuais como na cobertura especializada, na França, Europa e outras partes do mundo, a resposta é incrivelmente pretensiosa: ela chegará ao segundo turno, mas não ganhará. Praticamente ninguém parece conceber a possibilidade de uma vitória indiscutível, com maioria simples, no primeiro turno da eleição do próximo domingo, dia 23. A maioria das pesquisas promete apenas a perspectiva tranquilizadora de um duelo final.

Por quê? Alguns analistas apontam para a imensa bagagem política que herdou do pai, Jean-Marie Le Pen, que liderou a Frente Nacional antes dela; outros evocam diversas impossibilidades matemáticas. De qualquer forma, “Marine Le Pen não será presidente” – a ideia já se tornou um clichê, um tipo de chavão político, um hábito mental confortável.

Voto útil

Só que ele esconde uma forma de negação bastante peculiar, que ninguém quer reconhecer como o que pode ser um erro terrível. E leva à seguinte contradição: ao mesmo tempo em que a maioria discute a necessidade de mobilização contra a “presidência Le Pen”, através do chamado “voto útil”, ignora a possibilidade real de que ela ganhe, principalmente depois do tiroteio que matou um policial na Champs-Élysées, pelo qual o Estado Islâmico já assumiu a responsabilidade.

Esse paradoxo é, em parte, resultado de uma boa lembrança da eleição presidencial de 2002. No primeiro turno daquele ano, Le Pen derrotou Lionel Jospin, o candidato socialista, tirando vantagem do estado caótico da esquerda de então, mas o confronto que se seguiu, entre ele e Jacques Chirac, da direita tradicional e prevalente, se transformou em uma demonstração de força dos proponentes do pluralismo francês. Muitas vertentes diferentes – a direita, o centro, a esquerda, a extrema-esquerda – se movimentaram para dar a Chirac uma vitória esmagadora.

Houve manifestações imensas na época, que consagraram a estética de uma frente republicana unida contra a extrema-direita, mas também criaram a mitologia da mobilização da cidadania. E o resultado é essa negação atual.

Nobre selvagem

Tal ideologia hoje é vista como um contrapeso, mas ainda não como um agente principal. Define o terreno do discurso político, estabelece as questões que serão debatidas e canaliza as ansiedades do povo, mas não vai além disso – ou, pelo menos, é o que se diz. A Frente Nacional existe para instilar medo, não para governar.

Essa ideia também advém do retrato simplista que se faz do suposto eleitor médio francês, visto pela elite pensante como o cidadão consciente do que está em jogo com seu voto, ou seja, como o “noble savage” da política francesa atual.

É uma noção tão ilusória quanto a teoria de Rousseau. O eleitor francês pode não ser assim tão nobre.

Aqui vai um exemplo: por que outro motivo Le Pen não haveria de ser eleita? Por ser mulher. É grosseiro dizer isso, mas mesmo as análises políticas grandiosas são compostas de preconceitos mesquinhos. A França é um país de paradoxos: tornou-se uma república antes de seu tempo, mas continua sendo uma monarquia tardia em seus costumes, práticas e visão de poder.

Salvadora da França

Teria sido mais fácil entender como o casamento entre pessoas do mesmo sexo conseguiu desencadear debates acalorados em uma monarquia conservadora como a Espanha, mas foi na França que a lei foi contestada agressivamente, antes de finalmente ser aprovada, e acabou se tornando um teste para o modernismo de certos políticos.

Da mesma forma, Le Pen se esforça para parecer elegível se promovendo não como uma mulher que quer melhorar a vida de outras mulheres, mas como uma política que quer salvar a França. Fala de imigração, terrorismo, islamismo, colonização e do euro. Sobre a situação feminina, nem tanto.

Farsa

Por outro lado, ao falar desses temas da maneira dramática, à qual está acostumada, aos poucos Le Pen vem acabando com tabus e normalizando proposições escandalosas. Populistas como ela percebem que os melhores instrumentos de doutrinação não incluem a precisão, mas sim a internet e a farsa. Seu foco não é a verdade, somente os efeitos. E funciona: o eleitor hoje em dia não lê análises longas, mas se lembra de afirmações bombásticas.

Então por que, no fim das contas, Le Pen não pode ser presidente? Porque embora a extrema-direita tenha mudado seu discurso, a elite ainda se agarra à sua velha forma de ver o mundo, ou o que imagina que ele seja.

Sua análise da ascensão do populismo está fora de compasso. Ela se baseia em suposições, racionalizações errôneas e negação. A perspectiva de uma presidência Le Pen contraria um tipo de positivismo político, a ideia de que a democracia só pode melhorar, só pode deixar de ser uma necessidade para ser um direito. Segundo o raciocínio atual, a eleição de Le Pen iria contra o curso da história e, portanto, não pode se concretizar. Seria um final feliz para a elite: uma convenção narrativa, um conceito comercializável, uma variante da utopia – e a base de uma análise política irracional.

*Kamel Daoud é o autor do romance “Meursault, contra-investigação”. Este artigo foi traduzido do francês por John Cullen.

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