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Um episódio no fim de semana reabriu feridas sociais na África do Sul, cuja história é marcada pelas tensões raciais. Durante um evento em comemoração ao décimo aniversário do partido Combatentes da Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês), no sábado (29), o líder da legenda, Julius Malema, cantou a música “Mate o bôer”, que prega a violência contra brancos.
Quase 100 mil apoiadores do EFF estiveram no FNB Stadium, sede da abertura e final da Copa do Mundo de 2010, em Joanesburgo. A maioria acompanhou Malema quando ele cantou a canção, que tem os versos “atire para matar, mate o bôer, mate o fazendeiro [branco]”.
Os bôeres eram os colonizadores brancos, especialmente da Holanda, que chegaram à África do Sul a partir do século 17. Na segunda metade do século 20, o Partido Nacional, que tinha como bandeira o nacionalismo africânder (descendentes dos bôeres), implantou o regime discriminatório do apartheid contra a população negra sul-africana.
Nesse período, surgiu “Mate o bôer”, que Malema diz que não tem o objetivo de propagar a violência contra os brancos e que é apenas uma canção “revolucionária”.
Versos da música foram popularizados nos anos 1990 por Peter Mokaba, então presidente da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela e do atual presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa. Em 2012, o CNA afirmou que integrantes do partido não cantariam mais a canção.
O EFF é um partido marxista-leninista que ocupa a terceira posição em número de cadeiras no Parlamento da África do Sul, tanto no Conselho Nacional quanto na Assembleia Nacional, atrás do CNA e da oposicionista Aliança Democrática.
Em 2011, um tribunal regional sul-africano determinou que “Mate o bôer” é uma canção discriminatória, contendo discurso de ódio, e proibiu Malema, que ainda estava no CNA, de cantá-la. Entretanto, em agosto do ano passado, o Tribunal da Igualdade, corte sediada em Joanesburgo, decidiu que a música não configurava discurso de ódio ou incitamento à violência.
O juiz Edwin Molahleli, que presidiu o processo, alegou que o AfriForum, uma entidade representativa da população africânder, e suas testemunhas não conseguiram relacionar a canção a ataques e assassinatos registrados em fazendas de proprietários brancos na África do Sul.
O AfriForum, que apresentou recurso contra a decisão, criticou Malema por voltar a cantar “Mate o bôer” no último sábado. “É a questão de saber se cantar ‘mate o bôer, mate o fazendeiro [branco]’ é discurso de ódio. Dado que o assunto ainda está pendente e em processo de julgamento, isso [a decisão do ano passado] não dá a Malema o direito de cantar essa música”, disse Ernst Roets, diretor-executivo de estratégia do Afriforum, à SABC News.
A Aliança Democrática afirmou que apresentará acusação contra Malema no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e no Comitê de Ética do Parlamento sul-africano, onde o esquerdista é deputado, e pediu que Ramaphosa se pronuncie sobre o assunto.
O empresário Elon Musk, proprietário do Twitter, fez a mesma cobrança ao presidente sul-africano na rede social nesta segunda-feira (31). “Eles estão pressionando abertamente pelo genocídio dos brancos na África do Sul. Cyril Ramaphosa, por que você não fala nada?”, indagou Musk, que nasceu no país africano.
Vídeos com imagens de Malema cantando a música em Joanesburgo no fim de semana foram retirados do YouTube, que alegou violação à política da plataforma sobre discurso de ódio.
Em declarações publicadas pelo site Eyewitness News, o porta-voz nacional do EFF, Sinawo Tambo, disse que o Tribunal da Igualdade já decidiu que a música “Mate o bôer” não constitui discurso de ódio.
Tambo mandou a Aliança Democrática “ir para o inferno” e apontou que uma eventual condenação de Ramaphosa a Malema não faria nenhuma diferença.
“Não acho que haja diferença entre a Aliança Democrática e o CNA. Portanto, se Cyril Ramaphosa tentar tomar alguma ação contra o EFF por comemorar a luta de libertação da África do Sul, não ficaremos chocados. A Aliança Democrática e o CNA são a mesma coisa. Não estamos nem levando [o assunto] a sério, ainda estamos em clima de comemoração”, esnobou Tambo.