Ouça este conteúdo
O Departamento de Estado dos Estados Unidos e grupos de direitos humanos reconheceram recentemente que o modelo do governo cubano para o tráfico de médicos e outros profissionais de saúde para o exterior como sendo tráfico de pessoas e uma importante fonte de dinheiro – a maior até agora – para a ditadura cubana. O programa foi inserido no Brasil durante o governo de Dilma Rousseff, que comandou o país de 2011 a 2016, e foi reformulado em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, com a contratação de médicos brasileiros.
A ação judicial conjunta em curso nos Estados Unidos desde 2018 parte de quatro ex-integrantes do Mais Médicos que conseguiram fugir para o país contra a Organização Panamericana de Saúde (OPAS). Ramona Matos, que estava no Pará, foi a primeira a conseguir escapar da vigilância cubana no início de 2014, apenas cinco meses depois da chegada da primeira leva de cubanos. Ela se refugiou no gabinete da liderança do partido Democratas na Câmara dos Deputados e levou documentos que mostravam como funcionava o financiamento da ditadura caribenha com dinheiro brasileiro.
“A OPAS inicialmente transferiu dinheiro do tesouro federal brasileiro para o governo cubano, porque os negociadores não acreditavam que o Congresso brasileiro autorizaria o programa diretamente”, conta à Gazeta do Povo o advogado Sam Dubbin, que defende médicos cubanos na justiça americana.
De acordo com ele, nesse início a OPAS arrecadou pelo menos US$ 1,5 bilhão (R$ 7,7 bilhões) do Brasil, transferindo US$ 1,3 bilhão (R$ 5,16 bilhões) para Cuba, e menos de menos de 10% aos médicos e ficando com 5% para a organização (cerca de US$ 75 milhões, cerca de R$ 390 milhões).
Até 2018, Cuba gerou pelo menos US$ 8 bilhões (R$41,5 bilhões) por ano com “missões médicas” nas quais o governo “exporta” médicos e outros profissionais de saúde para países estrangeiros. As missões trabalhistas estrangeiras compreendem o maior elemento individual (mais de 50%) do orçamento nacional cubano.
“Os médicos estão exigindo justiça e responsabilidade contra a OPAS por sua conduta como facilitadora do empreendimento de tráfico de Cuba, confiscando os salários de milhares de médicos cubanos e os submetendo a condições de trabalho forçado”, explica Dubbin.
O advogado conta que os clientes dele foram informados pelo governo cubano de que seriam enviados ao Brasil e não tiveram escolha sobre a tarefa. Também não foram informados para qual cidade brasileira iriam ou quais atividades desempenhariam.
Dubbin também informa que os profissionais da saúde tiveram aulas de português básico e de métodos de doutrinação política da população brasileira local para apoiar Cuba e políticos brasileiros pró-castristas (que defendiam os ex-ditadores do país Fidel e Raúl Castro).
Segundo descreve Dubbin, os profissionais cubanos tinham restrição de movimentação pelo Brasil, com documentos especiais de viagem e não podiam circular pelas cidades fora do horário de trabalho sem a autorização dos supervisores. Cuba também teria enviado agentes de inteligência para controlar os movimentos dos trabalhadores da saúde e suas manifestações nas redes sociais. Esses agentes teriam sido pagos diretamente pela OPAS.
“As famílias dos médicos eram mantidas como reféns em Cuba, e as visitas ao Brasil eram estritamente limitadas para evitar deserções”, conta Dubbin. “Eles foram obrigados a ‘doutrinar’ os pacientes brasileiros com propaganda pró-Cuba – o que gerou até críticas de algumas autoridades brasileiras”, lembra o advogado.
OPAS ficou com milhões de dólares
De acordo com o processo em tramitação nos Estados Unidos, “a OPAS arrecadou mais de US$ 75 milhões (R$ 389 milhões na cotação atual) desde 2013 ao permitir, gerenciar e aplicar o tráfico humano ilegal de profissionais médicos cubanos no Brasil. Os demandantes são médicos cubanos que foram vítimas de tráfico de pessoas pela OPAS e que receberam apenas uma fração (10% ou menos) dos honorários que o governo brasileiro pagou à OPAS por seus serviços, enquanto a OPAS pagou pelo menos 85% ao governo cubano, e reteve uma taxa de corretagem de 5% para si”.
Os documentos enviados à Justiça contribuem, desde 2018, com informações sobre as “missões médicas cubanas” presentes nos Relatórios Anuais de Tráfico de Pessoas do governo americano a partir de 2019 até o mais recente.
O juiz do tribunal de primeira instância e o tribunal de apelações em Washington consideraram que os profissionais da saúde alegaram conduta que viola a Lei de Proteção às Vítimas de Tráfico dos EUA e que sujeitaria a OPAS à jurisdição dos EUA, apesar de suas alegações de imunidade.
“No momento, as vítimas estão solicitando documentação sobre transações bancárias e registros contábeis internos da OPAS”, conta Dubbin sobre a situação atual dos processos no país.
O real objetivo do programa
Em 2015, a emissora de televisão Band teve acesso a áudios de uma reunião que aconteceu antes do lançamento do programa, com ao menos seis assessores de ministérios do antigo governo petista. Uma participante disse que era preciso esconder o fato de que o Mais Médicos era, no fim, uma trama entre Brasil e Cuba – daí a necessidade de aceitar uma minoria de profissionais de outros países –, e que o destino dado ao dinheiro por Havana não era problema do governo brasileiro.
No final de 2018, o jornal Folha de S.Paulo teve acesso a telegramas da embaixada brasileira em Cuba, cujo sigilo havia expirado, mostrando que a ideia do Mais Médicos partiu de Havana, e a Sociedade Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos (SMC) veio ao Brasil em 2012 para mapear as áreas carentes de profissionais.
Por fim, a própria ditadura cubana chamou todos os médicos cubanos de volta assim que o presidente Jair Bolsonaro foi eleito. Alguns profissionais, no entanto, pediram cidadania para continuar no país.
ONU diz que é escravidão
Em 2019, a ONU enviou uma carta à Cuba pedindo explicações sobre as condições dos profissionais do programa. A partir de relatórios de ONGs, as relatoras Urmila Bhoola e Maria Grazia Giammarinaro escreveram para Havana indicando que estavam "preocupadas pelas condições de trabalho e de vida que estariam afetando os médicos cubanos enviados ao exterior".
Entre as denúncias recolhidas por elas estava a de que médicos cubanos se sentiam "pressionados a participar de tais missões e temiam represálias por parte do governo cubano se não participassem". A maioria deles não assinava contratos ou, quando assinavam, não ficavam com uma cópia.
O governo cubano ainda estaria congelando uma parte do salário a que os médicos só podiam ter acesso após o regresso ao país. “Mas, de acordo com a informação recebida, muitas vezes eles não receberam a quantia total a que têm direito", destacaram as relatoras.
De acordo com as informações de ONGs divulgadas pela ONU, os profissionais da saúde cubanos estavam sujeitos a uma jornada de 64 horas semanais, configurando “exploração laboral”.
Além disso, as Nações Unidas revelaram que muitos profissionais relataram receber ameaças de funcionários da ditadura cubana e médicas dizem ter sofrido assédio sexual durante as “missões”.
Diante da constatação, as relatoras apontaram que "as condições de trabalho relatadas poderiam ser elevadas ao trabalho forçado, de acordo com os indicadores de trabalho forçado estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho". "O trabalho forçado é uma forma contemporânea de escravidão", destacaram.