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Neste domingo (10), o economista libertário Javier Milei toma posse para presidir a Argentina até 2027.
Com um forte discurso de liberdade econômica e de alinhamento a Israel e Estados Unidos nas relações exteriores, ele será um estranho no ninho no mapa político da América Latina, onde a esquerda governa grande parte dos países, em três deles, por meio de ditaduras (Cuba, Venezuela e Nicarágua).
Durante a campanha, Milei alimentou esse antagonismo, ao dizer que não promoveria relações com países latino-americanos com governantes esquerdistas porque não tem “parceiros socialistas”.
Ele também chamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de “comunista” e “corrupto”, disse que não pretendia se encontrar com ele caso eleito e o acusou de ajudar na campanha do seu adversário no segundo turno, o peronista Sergio Massa.
Entretanto, Milei alterou o tom desde a sua vitória nas urnas. Ele enviou uma carta a Lula, destacando o desejo de “construção de laços” e convidando-o para a posse. O presidente brasileiro não irá a Buenos Aires: o governo será representando pelo chanceler Mauro Vieira.
Entretanto, em relação às ditaduras de esquerda latino-americanas, Milei não sinalizou mudanças: não convidou os ditadores Daniel Ortega (Nicarágua), Miguel Díaz-Canel (Cuba) e Nicolás Maduro (Venezuela) para a posse.
Pelas reações dos governantes latino-americanos desde a eleição de Milei, estes podem ser classificados em três categorias no que diz respeito à expectativa de relações com o novo governo argentino: hostis, pragmáticos e esperançosos. Confira:
Hostis
Assim como Lula, o presidente da Colômbia, o esquerdista Gustavo Petro, não comparecerá à posse de Milei, mesmo tendo sido convidado. Ele não escondeu sua insatisfação com a eleição do libertário.
“A extrema direita venceu na Argentina. É a decisão da sua sociedade. É triste para a América Latina e logo veremos... o neoliberalismo não tem mais propostas para a sociedade, não consegue responder aos problemas atuais da humanidade”, escreveu no X.
Novo parceiro de Petro, o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, afirmou que “a extrema direita neonazista venceu na Argentina”.
Já a ditadura da Nicarágua anunciou a retirada do seu embaixador em Buenos Aires, dando como justificativa as “repetidas declarações e expressões do novo governo” a respeito do regime de Daniel Ortega.
Pragmáticos
Nem todos os governantes de esquerda da América Latina, entretanto, prometem relações hostis com Milei.
O chileno Gabriel Boric confirmou que irá à posse do novo presidente argentino. “O povo chileno e o povo argentino são irmãos, portanto, meu dever como presidente da República é que, independentemente das diferenças políticas que sem dúvida existem entre o presidente eleito e o governo em exercício no Chile, os nossos povos e países tenham relações de Estado respeitosas e continuaremos a promover a integração no mais alto nível”, afirmou Boric.
No dia da eleição de Milei, Lula divulgou uma nota desejando boa sorte ao novo governo argentino, mas sem citar o nome do libertário.
“A democracia é a voz do povo, e ela deve ser sempre respeitada. Meus parabéns às instituições argentinas pela condução do processo eleitoral e ao povo argentino que participou da jornada eleitoral de forma ordeira e pacífica”, disse Lula no X.
“Desejo boa sorte e êxito ao novo governo. A Argentina é um grande país e merece todo o nosso respeito. O Brasil sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos”, disse Lula.
Outros sinais, além da carta de Milei convidando o brasileiro para a posse, indicam que a relação entre Brasil e Argentina será pragmática. Uma semana após a vitória de Milei, sua futura chanceler, Diana Mondino, se encontrou com Mauro Vieira em Brasília.
Outro sinal de aproximação foi o anúncio de que o peronista Daniel Scioli continuará sendo o embaixador da Argentina no Brasil, o que foi interpretado como um indicativo de que Milei pretende facilitar o diálogo com Lula.
Esperançosos
Os poucos presidentes de direita latino-americanos esperam que a vitória de Milei os tire do isolamento político na região.
O presidente paraguaio, Santiago Peña, também eleito este ano (no final de abril), parabenizou Milei e ofereceu “a mão cordial e fraterna do Paraguai para fortalecer as relações” entre os dois países em nota no X.
“Em nome do povo paraguaio, saúdo o fraterno povo argentino por uma jornada eleitoral exemplar”, disse o presidente paraguaio, que convidou Milei para visitar o Paraguai antes da sua posse – viagem que acabou não ocorrendo.
Nayib Bukele, presidente de El Salvador, também indicou apoio a Milei, ao ironizar o post de Gustavo Petro no X lamentando a vitória do libertário. “Agora diga isso sem chorar”, provocou, ao retuítar a postagem do presidente colombiano.
O presidente uruguaio, o conservador Luis Lacalle Pou, afirmou que seu país não vinha tendo “sorte nas relações exteriores” na América Latina, mas que a eleição de Milei indica que “a região está mudando e vamos aproveitar isso”.
“Sempre que algo novo começa, você dá crédito, e espero que os sucessivos passos que ele dê, pelo menos na relação com o nosso país, que é o que nos preocupa, e na relação com o Mercosul, sejam baseados no que foi dito”, declarou Lacalle Pou, falando da ideia de Milei de mudanças no bloco econômico.
“Na relação como chefe de Estado, você não vai dizer tudo o que pensa”
Do lado de Milei, resta a dúvida: o novo presidente argentino devolverá as eventuais hostilidades que receberá ou buscará ser pragmático, como indicou na sua postura sobre o Brasil?
Especialistas divergem sobre essa questão: Cruz Facundo, cientista político e membro do Centro de Pesquisa para a Qualidade Democrática da Argentina (Cicad), disse à Voz da América (agência financiada pelo governo dos Estados Unidos) que Milei “se sentirá mais confortável com atores” como Bukele, Peña e Lacalle Pou.
“O resto da região elegeu espaços e atores que não estão somente na ala oposta ideológica [à de Milei], mas também nas suas eleições derrotaram personagens semelhantes a Milei”, disse Facundo.
Por sua vez, Luís Alexandre Carta Winter, professor de direito internacional, direito internacional econômico e relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), acredita que o pragmatismo será predominante em todos os lados.
“Na relação como chefe de Estado, você não vai dizer tudo o que pensa, porque isso vai criar problemas”, justificou, em entrevista à Gazeta do Povo.
“A Argentina é extremamente protecionista, e há coisas muito sérias do atual governo que ele [Milei] precisa resolver, como o licenciamento não automático, que é uma poderosa barreira não tarifária e acaba tornando muito burocrático exportar para a Argentina. Houve aumento também das listas de exceções, desde o governo da [Cristina] Kirchner [2007-2015], que estavam diminuindo no âmbito do Mercosul e ela começou a aumentar outra vez. Isso cria entraves na parceria do Mercosul”, disse Winter.
Na América Latina, seja de esquerda ou de direita, a tendência é que “presidentes esclarecidos” atuem de maneira pragmática, afirmou o especialista.
“Posso não gostar da pessoa, mas vou tomar cuidado com as declarações de modo a não prejudicar o comércio. É claro, um país pode crescer com políticas internas, mas o crescimento [maior] realmente só vem com a pauta de exportações. O que eu espero do novo presidente [Milei], e já vem dando sinais disso, é pragmatismo”, afirmou Winter, que espera o mesmo comportamento de outros governantes latino-americanos – mesmo que os que torcem o nariz para Milei mantenham a virulência no discurso.
“O fato real se impõe à ordem do discurso, porque senão teríamos dificuldades enormes. Provavelmente, teremos muito discurso, e o comércio será feito como deve ser feito”, projetou.
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