Em 5.753 ocasiões, entre 2010 e 2016, militares dos Estados Unidos pediram para rever unidades militares afegãs para verificar se houve qualquer ocorrência de "violações graves dos direitos humanos". Em caso afirmativo, a lei americana determina que a ajuda militar seja interrompida nessas unidades.
Isso nunca aconteceu.
Essa foi uma das conclusões da investigação sobre o abuso sexual infantil por forças de segurança afegãs e a suposta indiferença do exército dos EUA ao problema, de acordo com um relatório divulgado pelo Inspetor Geral Especial para a Reconstrução Afegã, conhecido pela sigla SIGAR.
O estudo, encomendado pela administração Obama, foi considerado tão explosivo que a princípio foi definido como "Secreto/Interno", com a recomendação de permanecer em sigilo até 9 de junho de 2042. Foi concluído em junho de 2017, mas parece ter incluído dados até 2016, antes do início da administração Trump.
O relatório foi amplamente editado e, pelo menos nas partes que foram divulgadas, não deu grandes esclarecimentos sobre a prevalência do abuso sexual na polícia e nas forças armadas afegãs, nem com que frequência os militares americanos faziam vista grossa à prática generalizada do bacha bazi, ou "brincadeiras de meninos", na quais alguns comandantes afegãos mantinham garotos menores de idade como escravos sexuais.
"O Departamento de Defesa e o de Estado adotaram medidas para identificar e investigar incidentes de abuso sexual infantil, mas sua extensão pode nunca ser conhecida", disse o relatório.
O SIGAR relata que uma investigação sobre o bacha bazi foi aberta a pedido do Congresso e em resposta a um artigo do New York Times de 2015, que descreveu a prática como "generalizada". E disse que soldados dos EUA que deram queixa tiveram suas carreiras arruinadas por seus superiores, que os haviam encorajado a ignorar esses episódios.
"Os Departamentos de Estado e de Defesa só começaram a abordar o problema depois que ele foi divulgado pelo New York Times. E mesmo após essa matéria, as políticas adotadas e os recursos empregados parecem questionáveis. Quando o Congresso aprovou a Lei Leahy, a prioridade era a questão da grave violação dos direitos humanos. Como nosso relatório claramente mostra, as duas agências não conseguiram cumprir essa tarefa", disse John F. Sopko, o inspetor geral especial.
O ex-oficial das forças especiais, Capitão Dan Quinn, que bateu em um comandante afegão que mantinha um menino acorrentado à sua cama como escravo sexual, disse na época que, como resultado, foi demovido de seu comando.
"Estávamos pondo no poder pessoas que faziam coisas piores que os talibãs", disse Quinn, que deixou as forças armadas.
O sargento Charles Martland, altamente condecorado, foi forçado a sair do Exército depois de bater um comandante da polícia afegã que estuprava crianças em Kunduz. Martland se revoltou depois que o comandante afegão sequestrou um menino, estuprou-o, e depois bateu na mãe do garoto quando ela tentou resgatá-lo.
Os inquéritos do Congresso aparentemente levaram à reintegração de Martland.
O artigo do Times também citou a morte suspeita do soldado Gregory Buckley Jr., fuzileiro americano que foi morto no posto para o qual havia sido destacado, com um comandante famoso por manter um séquito de meninos bacha bazi. Buckley havia se queixado desse comandante e foi morto, juntamente com dois outros fuzileiros, por um dos garotos do comandante.
O relatório do SIGAR não fez nenhuma menção aos casos de Buckley, Quinn e Martland, e parece ter entrevistado apenas três soldados americanos que não deram seus nomes e que afirmaram estar cientes da prática, que muitos soldados e oficiais afegãos disseram aos jornalistas ser generalizada.
Ajuda militar
Começando em 12 de agosto de 2016, o Departamento de Defesa investigou 75 casos de violação dos direitos humanos, sete envolvendo o abuso sexual de crianças, mas até mesmo as autoridades do departamento reconheceram que isso era uma pequena fração do total, disse o relatório SIGAR.
Sob a Lei Leahy, os fundos da ajuda militar americana devem ser cortados de qualquer unidade militar estrangeira em que haja violação dos direitos humanos, o que inclui a prática de bacha bazi, com a escravidão e o estupro de meninos, mas outra disposição da lei americana, a chamada "cláusula não obstante", diz que a ajuda aos militares afegãos deve estar disponível "não obstante qualquer outra disposição de lei".
O relatório do SIGAR disse que a tal cláusula havia sido repetidamente usada para evitar o corte da ajuda militar às unidades afegãs.
"A continuada assistência do Departamento de Defesa às unidades sobre as quais possui informação de grave violação dos direitos humanos prejudica o trabalho de autoridades do governo dos Estados Unidos de convencer o governo afegão da importância do respeito aos direitos humanos e ao Estado de direito", disse o relatório.
Mas também afirma que não foram encontradas evidências de que soldados americanos foram obrigados a fazer vista grossa, ou de que seus comandantes toleravam a prática bacha bazi.
Comandantes militares americanos no Afeganistão negaram várias vezes a existência de alguma política para tolerar o abuso sexual.
O relatório do SIGAR recomenda restringir o uso da "cláusula não obstante" para escapar das disposições da Lei Leahy, e a lei orçamentária militar apoia essa recomendação.
A prática é tão generalizada que pelo menos um dos candidatos à presidência em 2014 era um senhor da guerra apoiado pela CIA, Gul Agha Shirzai, notoriamente acusado de pedofilia e de manter meninos bacha bazi.
O presidente Ashraf Ghani jurou acabar com a prática em um discurso de 2015, mas há poucas acusações, ou nenhuma, contra autoridades afegãs pela tal prática. Shirzai agora é ministro de Fronteira e Assuntos Tribais do governo de Ghani.