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A ditadura de Nicolás Maduro tem como uma de suas “fontes de financiamento” não oficiais a exploração ilegal do ouro. Depois que o governo começou a sofrer com o declínio na produção de petróleo, principal atividade econômica do país, o regime chavista passou a permitir a mineração em partes da amazônia venezuelana, criando o Arco Mineiro do Orinoco, que hoje está tomado por organizações criminosas e terroristas, inclusive o Exército da Libertação Nacional (ELN) e dissidentes das Forças Revolucionárias da Colômbia. Enquanto a população local sofre com a violência, problemas de saúde e a destruição do meio ambiente, o governo de facto se aproveita do caos para obter dinheiro de forma ilícita.
De acordo com um levantamento do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), os chavistas se beneficiam da mineração ilegal de duas maneiras. Uma delas é por meio das mineradoras estatais que extraem ouro e outros minerais de garimpos ilegais e os vendem oficialmente para outros países, especialmente para a Turquia e Emirados Árabes Unidos. Mas a grande parte do dinheiro que enche os cofres de Maduro e seus aliados está na extração ilegal e contrabando do ouro para fora do país.
Em um artigo publicado em abril, Moises Rendon e Linnea Sandin, pesquisadores do CSIS, explicam que o regime se beneficia em vários momentos dessa operação ilegal, seja quando as forças armadas lucram ao vender combustíveis para as guerrilhas que controlam os garimpos ou com o suborno que conseguem nas operações de transporte do ouro para fora do país, para citar dois exemplos dessa cadeia criminosa.
Segundo o International Crisis Group, há relatos de generais do Amazonas que receberam até 20 kg de ouro por mês em suborno, algo em torno de R$ 4 milhões, para permitir a mineração ilegal no Parque Nacional de Yapacana, uma área protegida. Parte desse ouro ilegal acaba entrando no Brasil e em outros países da região, como Colômbia e Guiana.
O custo humano desse esquema criminoso é mais difícil de calcular, mas uma investigação da da Organização das Nações Unidas (ONU), publicada nesta quarta-feira (15), pode ajudar a entender a gravidade da situação.
Arco Mineiro do Orinoco
O Arco Mineiro do Orinoco foi criado por decreto em 2016, em um esforço do regime chavista para aumentar a produção de minérios na Venezuela em virtude do declínio na produção de petróleo no país - embora a ideia já tivesse sido aventada pelo falecido ditador Hugo Chávez cinco anos antes.
A região de mais de cem mil quilômetros quadrados, maior do que o estado de Pernambuco e equivalente a 12% do território venezuelano, está dentro da amazônia venezuelana, passando pelos estados do Amazonas, Bolívar e Delta Amacuro. A área é rica em bauxita, coltan, diamante e principalmente ouro – que tem se tornado um recurso cada vez mais importante para a sustentação da ditadura chavista.
Ao definir esta zona extrativista, o governo de Nicolás Maduro declarou que tinha como objetivo organizar a atividade de mineração e diversificar a renda do Estado, baseada quase totalmente na produção de petróleo. Mas em pouco tempo o Arco Mineiro do Orinoco se tornou um centro de mineração ilegal onde atuam gangues, guerrilhas e grupos terroristas.
Em seu informe mais recente sobre a Venezuela, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas reconhece que a mineração ilegal acontece na Venezuela há mais de 20 anos, mas informa que a presença de atores criminosos na região começou a se tornar mais visível a partir de 2011, quando Chávez acabou com as concessões de mineração para empresas estrangeiras, e aumentou consideravelmente depois de 2015, com o aumento do preço do ouro. Não há qualquer controle do Estado sobre essas áreas dominadas por gangues, que também levaram a mineração ilegal para dentro de parques nacionais e áreas de floresta protegidas.
A ONU afirmou que, devido à falta de transparência da ditadura sobre o assunto, não foi capaz de determinar em que medida o governo conseguiu regularizar a mineração e conter a mineração ilegal. Mas relatos de ONGs ambientais e de direitos humanos e comunidades indígenas forneceram um retrato absurdo de violência e abusos que ocorrem na região, com a cumplicidade estatal.
“As informações disponíveis... indicam que grande parte da atividade de mineração, dentro e fora da AMO, é controlada por grupos criminosos organizados ou elementos armados. São eles que decidem quem entra ou sai das áreas de mineração, impõem regras, aplicam punições físicas cruéis àqueles que violam essas regras e obtêm benefícios econômicos de todas as atividades nas áreas de mineração, inclusive recorrendo à extorsão em troca de proteção”, lê-se no relatório publicado nesta quarta-feira (15).
Migração e condições de vida
A crise causada pelo declínio da produção de petróleo, anos de políticas econômicas fracassadas e ampla corrupção estatal, somado ao aumento do preço do ouro no mercado internacional, levou muitos venezuelanos para a tentar a vida na região destinada à mineração, buscando melhores condições de vida, mesmo sem ter experiência no trabalho. ONGs e institutos de pesquisa estimam que cerca de 500 mil pessoas trabalham com mineração ilegal na Venezuela.
De fato, a renda no Arco Mineiro do Orinoco é mais alta do que em outras regiões da Venezuela, mas as condições de vida são bastante precárias para muitos que se aventuraram por lá. Eles se veem obrigados a acampar nas margens das áreas de mineração, morando em abrigos improvisados com lonas e tábuas de madeira, sem acesso à água, energia elétrica e sem instalações sanitárias.
Além disso há grandes riscos de acidentes, já que a extração envolve a escavação de grandes crateras, onde os mineiros descem sem equipamentos de segurança, arriscando-se a ficar soterrados se houve um deslizamento.
Exploração, castigos e mortes
Neste ambiente, o escritório de Direitos Humanos “identificou um padrão de exploração do trabalho sob o qual os mineradores são forçados a entregar uma grande porcentagem do ouro extraído aos vários atores que controlam as minas”.
Funciona assim: para poder trabalhar nas minas, os mineradores precisam pagar entre 10% e 20% do produto extraído para o grupo que controla a mina, e mais 15% a 30% para o dono da usina onde as rochas são esmagadas. Além disso, o ouro é vendido por um preço 25% abaixo do mercado regulado e os mineradores precisam pagar caro por insumos como água e comida.
Quem não segue as regras se depara com a violência das quadrilhas. Entre os relatos que a equipe da ONU ouviu está o caso de um jovem que foi baleado nas duas mãos por roubar uma grama de ouro, o de uma mulher que foi espancada por roubar o telefone de um membro do “sindicato” e um mineiro que teve sua mão cortada por não declarar uma pepita de ouro.
Além dos castigos físicos, execuções também acontecem. Corpos de mineiros são frequentemente jogados em poços abandonados, que servem como sepulturas clandestinas.
O controle pelas minas também termina em assassinatos. O Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos fez uma análise, baseada em dados abertos, e identificou 16 confrontos violentos no AMO e arredores entre março de 2016 e março de 2020, resultando na morte de 149 pessoas. Segundo o relatório, as vítimas eram mineiros ou membros de gangues criminosas e os autores dos crimes eram supostamente membros de outras quadrilhas criminosas.
“De acordo com as informações coletadas, em oito desses incidentes, membros das forças de segurança do Estado que realizam operações de segurança na área estavam envolvidos em algumas das mortes”, informou a ONU.
As cidades vizinhas também sofrem com a violência dos bandos. O Observatório Venezuelano de Violência estima que o estado de Bolívar tenha registrado 84 assassinatos para cada 100 mil habitantes em 2019. Dados do próprio governo mostram uma taxa ainda maior nos municípios de Roscio e Callao, uma das cidades mais violentas do mundo.
Mineiros e outras pessoas que vivem nas comunidades vizinhas também são vítimas de altos níveis de violência. Segundo o governo, em 2019, no estado de Bolívar, foram registrados 36 homicídios para cada 100.000 habitantes; Por outro lado, para a organização não governamental Observatório Venezuelano de Violência (OVV), esse número foi de 84 homicídios por 100.000 habitantes. Segundo o governo, os municípios mineiros de El Callao, Roscio e Sifontes registraram taxas de 94, 109 e 64 homicídios por 100.000 habitantes, respectivamente.
Tráfico sexual e trabalho infantil também foram relatados nas zonas de mineração na amazônia venezuelana. Segundo o escritório das Nações Unidas, vários relatos confirmam o crescimento da prostituição nessas áreas desde 2016. A atividade é organizada em cidades próximas e os proprietários do lugar também precisam pagar uma taxa para os criminosos que controlam a mina. As doenças sexualmente transmissíveis aumentaram na região por causa da exploração sexual, que envolve meninas entre 13 e 14 anos. Meninos de apenas nove ou dez anos são forçados a trabalhar nas minas.
Os grupos guerrilheiros que atuam na área
Tudo isso acontece nesses lugares apesar de uma presença militar significativa das Forças Armadas Bolivarianas, responsáveis por defender o Arco Mineiro do Orinoco.
Mesmo se houvesse boa vontade do regime de Nicolás Maduro em resolver os vários problemas da zona, seria uma tarefa bastante difícil, com a presença de gangues prisionais, grandes organizações criminosas, gangues ligadas a sindicatos poderosos, grupos paramilitares (os famosos “colectivos”), além dos colombianos do Exército da Libertação Nacional (ELN) e dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
Segundo estudo do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), tradicionalmente as minhas ilegais no Arco são controladas pelos chamados “sindicatos”, mas passou a haver uma competição por território depois que Maduro fez vista grossa para a presença de grupos terroristas colombianos na Venezuela. “Vários líderes de alto nível das FARC começaram a se reagrupar na Venezuela e estão usando receitas de atividades como mineração ilegal para fortalecer seu poder”, afirmam Moises Rendon e Linnea Sandin, pesquisadores do CSIS.
Povos indígenas relataram ao escritório de direitos humanos da ONU que a presença de unidades militares, quadrilhas criminosas e elementos armados geralmente prejudica a paz e a segurança em suas comunidades. Eles citaram um caso ocorrido em novembro do ano passado, no estado de Bolívar, quando membros de uma quadrilha atacaram a comunidade de Ikaburu, localizada próxima a uma área de mineração, matando oito pessoas, inclusive um adolescente.
Problemas ambientais e de saúde causados pela mineração ilegal
Segundo levantamento do governo americano de 2019, mais de 2,8 mil quilômetros quadrados de floresta amazônica foram derrubados nos quatro anos seguintes à criação do Arco Mineiro do Orinoco. Pelo menos 50% dessa área estava em “territórios protegidos”. outro sério risco para o meio ambiente é a contaminação de águas com mercúrio, metal amplamente utilizado na mineração, apesar de ser proibido, e que é jogado no solo e acaba contaminando também os rios.
Comunidades indígenas da região temem que no futuro a água dos rios esteja imprópria para uso devido à contaminação por mercúrio. Um estudo de 2017, da Secretaria de Saúde de Guaianía, na Colômbia, mostrou um nível de mercúrio 60 vezes acima do normal nas amostras de sangue de moradores do distrito que vivem nas margens dos rios Atabapo, Guainía e Inírida, perto de onde ficam as minas ilegais da Venezuela.
Segundo o relatório da ONU, as mulheres, por passarem mais tempo em contato direto com a água devido às tarefas domésticas, estão mais suscetíveis à contaminação com o metal pesado. Para as grávidas, o problema é maior ainda porque o mercúrio pode causar defeitos neurológicos nos fetos.
Além dos perigos de contaminação por este metal pesado, as condições insalubres das minas favoreceram o ressurgimento da malária na Venezuela, que já havia erradicado a doença. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 300 mil casos de malária foram relatados na Venezuela entre janeiro e outubro de 2019. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) disse que o aumento de casos está concentrado em regiões de atividade mineradora. Outras doenças como difteria, febre amarela, dengue e chikungunya também aumentaram por causa das condições dos garimpos.