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O movimento por reformas policiais nos Estados Unidos ganhou corpo com os protestos contra a morte de George Floyd. Vários governos locais passaram a priorizar o assunto, aprovando leis mais rígidas contra o abuso da força policial. Em nível federal, os democratas do Congresso apresentaram nesta segunda-feira (8) um amplo projeto de lei sobre o tema, que inclui medidas destinadas a aumentar a responsabilidade pelas ações policiais, mudar as práticas adotadas pelos oficiais e restringir os perfis raciais, segundo informou o jornal Washington Post.
Contudo, propostas mais radicais também estão em pauta.
O legislativo de Minneapolis, cidade onde Floyd foi assassinado, quer redefinir a segurança pública nos Estados Unidos, prometendo “iniciar um processo para acabar com o departamento de polícia” local. Nove entre os 12 membros do Conselho da Cidade, equivalente à Câmara de Vereadores das cidades brasileiras, apoiam a proposta. Em uma declaração assinada por eles e lida neste domingo (7) durante um comício na cidade, eles afirmaram que “décadas de esforços para uma reforma policial provaram que o Departamento de Polícia de Minneapolis não pode ser reformado e nunca será responsável por suas ações". E continuaram: "Estamos aqui hoje para iniciar o processo para acabar com o Departamento de Polícia de Minneapolis e criar um novo modelo transformador para cultivar a segurança em Minneapolis”.
O prefeito de Minneapolis, o democrata Jacob Frey, aparentemente é contra a proposta, que já vinha sendo discutida pelo Conselho dias antes. No sábado ele disse que não aprova a abolição total do departamento de polícia e acabou sendo vaiado por vários manifestantes que tinham marchado até a casa dele durante um protesto. Em entrevista no dia seguinte, Frey explicou seu posicionamento, dizendo que apoia um "novo modelo transformador" de segurança pública, mas que é contra a eliminação do departamento por completo. "As pessoas continuam a exigir serviços de várias formas em nossos escritórios de segurança pública, seja em tempos de violência doméstica ou assistência em algumas das condições mais difíceis", argumentou. Porém, uma oposição do prefeito teria pouco efeito para impedir que o legislativo leve a cabo a proposta de acabar com o departamento de polícia, já que a maioria formada em torno dela impede o prefeito de vetá-la. Isso se o assunto realmente avançar na Casa Legislativa.
Além da intenção demonstrada nas palavras proferidas pelos legisladores, não há um projeto definido. Os próprios membros do Conselho da Cidade reconheceram que antes de qualquer ação será necessário um amplo debate com a população. “Estamos comprometidos em conversar com todos os membros da comunidade que estiverem dispostos a debater o assunto ao longo do próximo ano para identificar como é a segurança para você”, disse a maioria legislativa em comunicado.
Entretanto, algumas ideias começaram a pipocar. Lisa Bender, presidente da Câmara e uma das defensoras mais ferrenhas do fim do Departamento de Polícia de Minneapolis, disse em entrevista na semana passada que apoiaria um departamento orientado para prevenção da violência e serviços comunitários. O coletivo Black Visions, de Minnesota, defende que é necessário investir em mais iniciativas voltadas à comunidade, em áreas como saúde mental, e fazer com que os próprios membros da comunidade respondam a questões de segurança pública.
Uma das legisladoras signatárias da declaração, Andrea Jenkins afirmou, após o comício, que é preciso ouvir o que os mais de 430 mil moradores de Minneapolis querem. “Esta é uma multidão muito bonita e maravilhosa que está aqui agora, mas essa não é a totalidade de Minneapolis”, disse, admitindo estar em conflito sobre a promessa que fez de desmantelar a polícia. Ela contou que resolveu endossar a proposta porque mudanças no treinamento e sucessivas tentativas de reforma da polícia local não funcionaram.
O problema dos sindicatos
Ativistas locais há tempos criticam a polícia de Minneapolis, alegando que persiste no departamento uma cultura racista e brutal. Um dos problemas que vem sendo citado por especialistas na imprensa americana reside em poderosos sindicatos policiais, que se opõem a mudanças e protegem os oficiais em diversas situações. “Existem muitos termos e condições nos acordos coletivos de trabalho que isolam a polícia da responsabilidade e da transparência", disse ao Washington Post Jody Armour, professor de direito da Universidade do Sul da Califórnia.
Em artigo para o National Review, o jornalista John Fund citou uma frase de Booker Hodges, comissário assistente do Departamento de Segurança Pública de Minnesota e membro de sindicato policial. Em 2018 Hodges escreveu que “é necessário um sindicato para representar um oficial, mas nos casos em que alguém claramente viola nosso juramento de cargo, defendendo publicamente um oficial que claramente viola nosso juramento de posse, isso prejudica as relações com a comunidade e mina a confiança”. Fund também citou Andy Skoogman, diretor executivo do sindicato Minnesota Chiefs of Police, que em entrevista à Fox News reconheceu que xerifes tentam demitir maus policiais, mas os tribunais os absolvem.
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Minneapolis tem um forte sindicato policial, liderado por Bob Kroll, que declarou que George Floyd era um “criminoso violento”, ignorando o fato de que Floyd sequer reagiu à ordem de prisão do policial que o matou. A ex-chefe da polícia de Minneapolis, Janeé Harteau, disse que Kroll tem mais poder do que o chefe de polícia da cidade. “A federação policial historicamente teve mais influência sobre a cultura policial do que qualquer chefe de polícia", disse Harteau ao britânico The Guardian. Derek Chauvin, o policial que matou Floyd, foi alvo de 18 reclamações no Departamento de Polícia de Minneapolis, mas não é possível saber o conteúdo dessas reclamações por causa de regulamentos de "privacidade", negociados como parte dos contratos dos policiais pelos sindicatos.
O chefe da polícia de Minneapolis, Medaria Arradondo, não falou sobre os pedidos para dissolver o departamento, mas na semana passada disse que vai "continuar a trabalhar nos esforços para aumentar a confiança do público, melhorar a segurança pública e promover a mudança de cultura" do departamento.
O Departamento de Polícia de Minneapolis está sendo investigado pelo Departamento Estadual de Direitos Civis de Minnesota por violações aos direitos humanos. Após a pressão da opinião pública, os quatro oficiais envolvidos na abordagem de Floyd foram demitidos, diferentemente do que ocorreu em 2014 no caso de Eric Garner, em Nova York, que morreu em circunstâncias semelhantes. O policial que matou Garner, Daniel Pantaleo, só foi demitido quatro anos depois.
Corte de verbas
O desmantelamento da polícia em Minneapolis talvez comece com um corte de verbas para o departamento, uma ideia que não é nova, mas que tem ganhado força em localidades governadas por democratas após a morte de George Floyd.
Mais notadamente, o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, prometeu neste domingo (7) cortar o orçamento da polícia local, que atualmente é de US$ 6 bilhões. De Blasio não tratou sobre números e disse que os detalhes serão discutidos com o Conselho da Cidade, o órgão municipal legislativo, durante debate sobre o orçamento anual de Nova York, que deve entrar em vigor a partir de 1º de julho. “Estamos comprometidos em ver uma mudança de financiamento para serviços para jovens, para serviços sociais, que acontecerá literalmente nas próximas três semanas, mas não vou entrar em detalhes porque está sujeito a negociação e nós queremos descobrir o que faz sentido”, disse de Blasio.
Na semana passada, o prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti, anunciou que cortaria até US$ 150 milhões de um aumento planejado no orçamento do Departamento de Polícia, em resposta aos protestos.
Críticos do desfinanciamento da polícia apontam que os Estados Unidos sofrem com crimes violentos - mais de 16 mil assassinatos em 2018 - e que ter menos policiais nas ruas deve aumentar ainda mais essa cifra.
O corte de verba da polícia “faz tanto sentido quanto cortar fundos para um hospital ou uma escola onde um médico ou professor se envolveu em uma conduta criminal contra um paciente ou aluno”, escreveu Curtis Hill, procurador-geral de Indiana, em artigo de opinião para a Fox News. “Em todos esses casos, os policiais, médicos e professores não seriam os únicos a sofrer como resultado do reembolso. Pacientes, estudantes e o público em geral sofreriam”.