Conflito
"Nós todos seríamos dizimados"
Foi mais ou menos em dezembro de 2010 Mary Nyekueh Ley afirmou, com um sorriso, que não é muito boa com datas que ela e seus filhos embarcaram em um ônibus em direção a sua terra natal, um lugar chamado Mankien, ao sul da fronteira entre os países. Ela disse que estava empolgada para participar do referendo pela independência realizado em janeiro de 2011 e que estava tudo certo para que ela voltasse a viver com seu povo.
Mas, certa manhã, uma milícia de criminosos invadiu Mankien durante a onda de violência e revoltas que recentemente varreu as comunidades do sul. Soldados do Sudão do Sul correram para enfrentá-la. O confronto durou dois dias e quando Ley saiu de sua cabana, ela se deparou com dezenas de corpos sobre a grama homens, meninos e meninas. "Nós todos seríamos dizimados", afirmou.
Ela também ficou incomodada com a falta de desenvolvimento do sul e não que ela esteja cercada de modernidade aqui em Omdurman, cidade vizinha de Cartum. Ela vive em uma casa com paredes de barro e com imagens de Jesus na parede perto de sua cama. Mas, em Mankien, não há ruas asfaltadas nem eletricidade, e há poucos poços e poucas escolas.
O Sudão do Sul é um dos países mais pobres do planeta, onde 83 por cento da população vive em cabanas com teto de palha e onde uma menina de 15 anos tem mais chance de morrer durante o parto do que de terminar a escola.
Mary Nyekueh Ley consegue resumir sua existência em poucas palavras. "Minha vida é uma maldição", diz.
Seu primeiro marido foi ferido em uma batalha e morreu em seus braços. Seu segundo marido a espancava. Dois de seus filhos morreram em decorrência de um dos problemas mais fáceis de solucionar: diarreia.
E agora ela é uma sudanesa do sul vivendo no norte, uma estranha de pele escura com cicatrizes tradicionais em todo o seu rosto, tentando educar dois filhos e duas filhas. Pior do que isso, a habilidade que lhe garante o sustento é a fabricação de bebidas alcoólicas caseiras, um crime grave no Sudão islâmico e que já fez com que ela fosse presa dez vezes e recebesse dezenas de chibatadas.
"Olhe", ela comentou, apontando para as faixas de cicatrizes brancas que subiam e desciam de suas canelas. "Foi a polícia."
Sem dúvida, a situação de Ley é extrema, mas não é exclusiva. Centenas de milhares de sudaneses do sul que passaram a maior parte de suas vidas no norte agora se encontram entre dois mundos, suas vidas abaladas por uma divisa tumultuada que recentemente rachou o país em dois.
Em julho do ano passado, depois de décadas de guerrilha, o Sudão do Sul se separou do Sudão e formou sua própria nação. A maior parte dos sudaneses do sul ficou em êxtase. A festa em Juba, a capital do Sudão do Sul, não parou por dias.
Mas para os sulistas que vivem do lado norte da fronteira, como Ley, cujas mãos cheias de calos e rachaduras contam sua própria história de sofrimento e trabalho pesado, a alegre separação ajudou a agravar sua miséria.
Por causa da inimizade entre o Sudão e o Sudão do Sul, os dois países estão enviando tropas para a fronteira e se preparando para outro grande conflito que pode se espalhar por toda a região não haverá dupla cidadania para os sulistas que vivem no norte e não se sabe qual será a situação dos nortistas que vivem no sul.
O governo sudanês afirma que irá cancelar a cidadania de todos os sulistas a partir de abril. Se eles quiserem permanecer no Sudão, deverão solicitar um visto, uma autorização de trabalho, documentos de residência e afins. Será extremamente difícil, senão impossível, que pessoas pobres e analfabetas, como Ley, que muitas vezes não possuem nada que comprove quando e onde nasceram, consigam esses documentos.
Mesmo se alguém nasceu no norte, como Georgie, o filho de 9 anos de Ley, as restrições são as mesmas. Caso uma pessoa pertença a um grupo étnico do sul incluindo os nuer, o grupo de Ley essa pessoa é considerada uma sulista.
Diante de tudo isso, mais de 350 mil sulistas se mudaram recentemente do norte para o sul, de ônibus ou de barco, como parte de uma enorme migração promovida pela ONU e pelo governo do Sudão do Sul. Muitos outros estão preparados para fazer o mesmo.