Mohammed Mikdad costumava passar suas tardes de sexta-feira na cerca que percorre a fronteira de Gaza, participando de manifestações semanais contra Israel. Elas eram divertidas, ele disse, e ele não tinha muito mais o que fazer.
Mas depois de ser baleado na perna por um atirador israelense em maio, Mikdad, de 35 anos, passou as últimas sextas-feiras pedindo dinheiro do lado de fora da mesquita local, sem poder continuar seu trabalho como porteiro e lutando para sustentar seis filhos e pagar suas dívidas.
"Esperávamos que isso causasse uma pequena mudança. Mais tarde, descobri que foi inútil", disse ele, com a perna fixa em um aparato de metal que ele ajusta a cada seis horas para ajudar a consertar seu osso quebrado.
Em todas as semanas no último ano, os palestinos se reuniram na cerca para protestar na Marcha do Retorno. Para o Hamas, o grupo militante que controla Gaza, os protestos se tornaram uma ferramenta para pressionar Israel a abrandar as restrições sobre o enclave, com sucesso limitado.
As recompensas tangíveis para os 2 milhões de habitantes de Gaza foram modestas. O Hamas garantiu um acordo temporário sob o qual Israel permitiu a entrada de fundos do Qatar no território para pagar salários e combustível. O desemprego dos jovens, no entanto, é de 65 por cento, a pobreza é generalizada e a desilusão tanto com as manifestações quanto com o Hamas está crescendo entre uma população que pagou com o seu sangue.
"Conseguimos algo, mas não é muito e é muito menos do que o esperado", disse Basim Naim, que dirige o escritório de relações internacionais do Hamas. "Se compararmos a conquista com o preço, pagamos um preço muito alto".
Desde o início das manifestações, no ano passado, 256 palestinos foram mortos, incluindo 49 com menos de 18 anos, segundo autoridades de saúde de Gaza, a maioria atingida por artilheiros israelenses. Outros 6.850 sofreram ferimentos à bala – mais de 130 pessoas por semana, em média.
Autoridades israelenses disseram que a força letal é necessária para proteger a cerca e impedir que os palestinos potencialmente ataquem as comunidades israelenses do outro lado. Israel acusa o Hamas, considerado pelos EUA e por Israel como um grupo terrorista, de usar manifestações como cobertura para ataques.
Hostilidades
Desesperado para oferecer melhores condições de vida e evitar frustrações crescentes, o Hamas tentou novamente aumentar a pressão sobre Israel nas últimas semanas, dizem analistas. Palestinos enviaram mais de uma dúzia de balões incendiários através da fronteira para Israel, uma atividade que o Hamas havia concordado em parar. Um foguete, que o exército israelense disse ter sido lançado pelo Hamas, atingiu uma casa perto de Tel Aviv na segunda-feira, provocando ataques aéreos israelenses em Gaza e mais lançamentos de foguetes do enclave. As hostilidades destacaram o potencial para uma escalada violenta antes das eleições de 9 de abril em Israel.
O próximo teste será neste sábado. O Hamas convocou manifestações em grande escala para marcar o aniversário das marchas, que começaram em 30 de março de 2018.
Para o Hamas, os protestos produziram alguma margem de manobra. Há um ano, analistas especularam que se o Hamas se sentisse compelido a desviar a pressão crescente que enfrentava em Gaza, isso poderia desencadear uma nova guerra com Israel.
"A situação em janeiro de 2018 era muito, muito perigosa e explosiva", disse Naim. "Havia três cenários: explodir externamente, com escalada e uma nova guerra com os israelenses; aceitar a situação, que eu sempre descrevi como morrer em silêncio; ou o terceiro cenário, que era explodir internamente".
No ano passado, em um esforço para pressionar seu rival Hamas, a Autoridade Palestina cortou o pagamento de milhares de trabalhadores assalariados em Gaza, tirando milhões da economia e aumentando a miséria causada por mais de uma década de fortes restrições israelenses à circulação de pessoas e bens dentro e fora do território.
Mikdad era um soldado da Autoridade Palestina, controlada pelo partido Fatah, antes de ser expulso do poder em Gaza, quando o Hamas venceu as eleições em 2007. Ele viu seu pagamento cair de US$ 550 por mês para US$ 380. Mahmoud Abbas, que dirige a Autoridade Palestina, com sede na Cisjordânia, também cortou pagamentos pela eletricidade em Gaza, o que resultou em uma extensa falta de energia e desativou sua estação de tratamento de esgoto. Esgoto bruto estava fluindo para o mar.
Restrições mais pesadas
Enquanto isso, Israel apertou as restrições e, entre outras coisas, reduziu drasticamente as permissões para que empresários entrassem e saíssem de Gaza.
Então, quando jovens ativistas começaram a se reunir em torno da ideia de manifestações na cerca, o Hamas seguiu em frente. Naim disse que os jovens precisam ser lembrados da raiz de seus problemas: Israel.
Autoridades do Hamas dizem que os protestos conseguiram colocar a questão palestina novamente no centro das atenções. Eles também contribuíram para o acordo temporário, segundo o qual o Qatar forneceu US$ 10 milhões para salários, US$ 10 milhões para a central de energia e US$ 5 milhões para um projeto de salário por trabalho.
Israel estendeu os direitos de pesca aos palestinos, e o Egito abriu a fronteira para que os moradores de Gaza deixassem o enclave.
"Isso não resolve o problema; é um analgésico", Mkhaimar Abusada, professor de ciência política da Universidade al-Azhar, em Gaza, disse sobre o acordo.
Esforços se esgotando e paciência acabando
O Egito está tentando mediar um acordo com Israel que permitiria o financiamento de projetos de infraestrutura de água e eletricidade em troca de paz, mas os esforços do Egito para intermediar um entendimento de longo prazo estagnaram.
A paciência em Gaza está acabando, disse Abusada.
Nas últimas semanas, protestos palestinos eclodiram nas ruas, desta vez contra o Hamas. O grupo reprimiu brutalmente os manifestantes, usando munição real e batendo neles com cassetetes. Grupos de defesa dos direitos humanos estimam que cerca de 150 pessoas ficaram feridas e centenas de pessoas presas.
Jornalistas cobrindo as manifestações também foram espancados, presos e tiveram seus equipamentos apreendidos.
"Acho que este é um teste decisivo para entender como o Hamas está nervoso", disse o coronel israelense aposentado Michal Milstein, que atuou como conselheiro em assuntos palestinos com o exército israelense.
Esse descontentamento popular é a única descarga que o grupo tem, segundo ele, o que torna improvável que o Hamas seja capaz de encerrar as manifestações ao longo da cerca.
O custo humano já está sobrecarregando Gaza.
"O povo palestino, mais e mais, não quer ser combustível para uma escalada entre Israel e Hamas", disse Abusada. "Perdemos tantos jovens palestinos que discutimos dentro de nossa própria comunidade que basta. Muitos feridos não recebem os cuidados médicos de que precisam, e acabam em uma situação miserável".
Serviços médicos sobrecarregados
Os serviços de saúde sobrecarregados de Gaza não conseguiram cuidar do grande número de pessoas que sofreram ferimentos a bala. Muitos necessitaram de múltiplas cirurgias.
A organização Médicos sem Fronteiras diz que tratou mais de 4 mil ferimentos de bala no ano passado em cinco clínicas. Do lado de fora, rapazes com pernas enfaixadas e muletas sentam-se na rua.
"Há uma falta de leitos. A capacidade de absorver mais pacientes assim é mais do que desafiadora", disse Carla Melki, coordenadora de campo da organização para Gaza.
Mohammed Abu Sharar, 22 anos, foi ferido em 30 de março de 2018. Ele disse que foi atingido por uma bala cerca de três minutos depois de chegar ao local de bicicleta "só para olhar". Ele passou por 17 cirurgias. "Agora é inútil se arrepender", disse ele, com a perna em um aparelho de metal.
Uma comissão de inquérito das Nações Unidas concluiu no mês passado que as forças israelenses podem ter cometido crimes de guerra abrindo fogo contra manifestantes, a maioria dos quais estava desarmada e não representava ameaça imediata de morte ou ferimentos graves aos soldados quando atingidos. A comissão disse que 183 palestinos foram mortos nos primeiros nove meses das manifestações.
As conclusões da comissão foram rejeitadas por Israel, que disse estar investigando 11 mortes na fronteira. Embora os militares israelenses não tenham divulgado totalmente suas regras de combate, autoridades disseram que o uso de munição real pode ser justificado quando os manifestantes colocam em risco a cerca.
Israel agora enfrenta duas opções ruins, disse Milstein. A primeira é negociar um acordo de cessar-fogo com o Hamas e ajudar a estabilizar Gaza, mas isso pode fortalecer o Hamas. A segunda é manter ou endurecer as restrições ao território, o que poderia provocar o colapso do Hamas e deixar Israel com o ônus de cuidar de 2 milhões de habitantes de Gaza, disse ele.
Enquanto Israel e Hamas têm tentado evitar uma escalada para guerra total, não significa que isso não aconteça, acrescentou.
"A dinâmica dos confrontos diários e da tentativa do Hamas de canalizar seus problemas internos em direção a Israel, isso pode ser uma receita para a escalada, sem planejamento ou entusiasmo", disse Milstein, alertando para uma potencial crise antes das eleições israelenses.
Escalada perigosa
Os dois lados se aproximaram perigosamente da guerra no início da semana, depois que o foguete de Gaza atingiu uma casa na região central de Israel, ferindo sete pessoas e obrigando o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a interromper uma visita aos Estados Unidos. Os militares israelenses transferiram reforços para a fronteira com Gaza e estão se preparando para manifestações neste fim de semana.
O Hamas convocou uma marcha de "um milhão" para marcar o aniversário de sábado. Mas as manifestações, que continuaram semanalmente, perderam a sensação de esperança e entusiasmo dos primeiros dias em que atraíram vários moradores de Gaza.
Ainda assim, a cada semana, milhares de palestinos vão para a cerca, incluindo Mohammed Bourdaini, de 18 anos, que vem apesar de ter sido ferido quatro vezes. Ele foi ferido no rosto por estilhaços na primeira sexta-feira. Na quarta sexta-feira, uma bala atravessou o seu braço. Estilhaços quase arrancaram o seu olho na terceira vez. Na última vez, um mês atrás, uma bala atingiu sua perna.
Em uma sexta-feira recente, ele retornou da fronteira de muletas, com um estilingue em volta do pescoço. Seu primo, que também foi baleado na perna, mancava ao lado dele.
O confronto afetou sua família: oito membros foram feridos no ano passado.
"Isso não alcançou nada", disse seu tio, que foi ferido por fragmentos de bala no peito.
O pai de Bourdaini também foi baleado há duas semanas – uma bala atravessou as duas pernas dele. Descansando em uma cama que ele não pode deixar, ele disse: "A única coisa que posso considerar é que isso fez com que as pessoas prestassem atenção".
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