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Oriente Médio

Moradores de Gaza têm sobrevivido à guerra. Agora, estão morrendo de depressão

Raeda Ayyoub lamenta a morte de seu filho Mohammed, que se deixou matar por um sniper israelense, durante protestos na Faixa de Gaza | Wassam Nassar/Washington Post
Raeda Ayyoub lamenta a morte de seu filho Mohammed, que se deixou matar por um sniper israelense, durante protestos na Faixa de Gaza (Foto: Wassam Nassar/Washington Post)

Fathi Harb queria se suicidar. Foi a um protesto ao longo da fronteira de Gaza, esperando que snipers israelenses atirassem nele, disse seu avô. Como isso não aconteceu, Harb, de 22 anos, tentou novamente. Participou de mais um protesto logo depois e, outra vez, sobreviveu. Então, em maio, ateou fogo a si mesmo em uma rua movimentada da Cidade de Gaza. Acabou sucumbindo aos ferimentos. "Ele ligou para o pai dele antes de se imolar e contou-lhe seus planos", disse Saeed, seu avô. 

Segundo os especialistas, uma crise relacionada à saúde mental está atingindo a Faixa de Gaza. Ela é decorrente de guerras sucessivas e do estresse necessário para atender às necessidades diárias no enclave palestino sitiado e empobrecido. 

Especialistas em saúde mental observam um aumento significativo nos sintomas de sofrimento psicológico nos últimos anos. Em 2017, o número de pacientes psiquiátricos que visitaram clínicas de saúde mental afiliadas ao governo aumentou 69% em comparação com anos anteriores, de acordo com o Centro de Direitos Humanos Al-Mezan, em Gaza. O Programa Comunitário de Saúde Mental de Gaza registrou um aumento, no ano passado, dos casos de ansiedade, depressão e suicídio. 

Em um relatório recente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que as restrições impostas à vida dos palestinos, inclusive na Faixa de Gaza, tiveram um "enorme efeito" sobre a saúde mental da população. É “muito mais do que simples transtornos psicológicos”, aponta o documento. 

Quase 2 milhões de palestinos estão confinados na Faixa de Gaza, cercados por restrições às viagens e ao comércio impostas por Israel, pelo Egito e pela Autoridade Palestina. O objetivo é o de pressionar o Hamas, que governa o território. 

O fechamento paralisou a economia de Gaza e fez com que o desemprego disparasse. Os moradores de Gaza tem eletricidade por apenas umas poucas horas por dia. A maior parte da água potável está contaminada. O espectro de um novo conflito com Israel paira sobre o território. 

Falta de esperança

Harb estava cronicamente desempregado. Compartilhava um apartamento individual com 12 membros da família, incluindo sua esposa grávida. "Ele disse: 'Será melhor do que esta terrível vida que estamos vivendo'", lembrou Saeed. 

Em Gaza, "estamos falando de uma situação em que a maioria das pessoas tem sentimentos de falta de esperança, desamparo e impotência", disse Hasan Ziyada, diretor do Programa Comunitário de Saúde Mental de Gaza. "Eles se sentem presos. Sentem-se paralisados e não podem fazer nada para mudar sua realidade." O resultado são altos níveis de estresse e trauma psicológico. 

Gaza sempre tem sido sinônimo de violência e insegurança. Mas o pior período de conflito tem sido a última década, quando mais de 4.000 palestinos foram mortos em três guerras entre o Hamas e Israel, segundo a B'Tselem, organização israelense de direitos humanos. 

Imediatamente após a guerra de 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que até 20% da população pode ter desenvolvido problemas de saúde mental. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 300 mil crianças em Gaza precisaram de algum tipo de cuidado psicossocial. 

Traumas

Quando as forças israelenses mataram Mohammad Ayyoub, de 14 anos, em um protesto em Gaza em abril, o jovem, esperto, mas problemático, já tinha passado por três guerras. Elas o deixaram profundamente traumatizado. Foi tratado por ansiedade e temperamento violento, disseram seus pais. 

A família do menino se reuniu recentemente em sua casa, escassamente mobiliada, no campo de refugiados de Jabalya. Eles se debruçarem sobre seus cadernos escolares, onde gostava de rabiscar corações durante a aula. Também pararam para ver vídeos dele dançando a dança folclórica palestina conhecida como dabke. Os pais se lembraram de como a saúde mental de Ayyoub foi se alterando. 

Após a guerra de 2014, Ayyoub ficou nervoso e com medo do escuro. Ele atacou seus irmãos e irmãs em casa. 

No programa de aconselhamento de trauma, na escola que era administrada pela ONU, Ayyoub aprendeu exercícios de controle do estresse, incluindo respiração controlada. O tratamento pareceu funcionar. Mas ele teve uma recaida, ficando mais sério, irritadiço e retraído. 

"Ele parou de sorrir, parou de brincar com outras crianças", disse Raeda, que usava um lenço floral e estaba cercada por seus outros cinco filhos. "O pai dele dizia: você precisa se acalmar” 

Chateado com a decisão americana de transferir sua embaixada para Jerusalém, cidade que israelenses e palestinos reivindicaram como capital, Mohammad Ayyoub disse à mãe que estaria disposto a dar sua vida pela cidade. Em 20 de abril, foi a uma manifestação na fronteira entre Israel e Gaza. Um sniper israelense atirou na cabeça dele. 

Pelo menos 127 palestinos foram mortos em protestos semanais similares aos que Ayyoub participou. 

O Conselho Norueguês de Refugiados (NRC), que ajuda refugiados palestinos, também tratou Ayyoub em seu programa de aconselhamento realizado nas escolas locais. O grupo mapeou a "deterioração psicológica" entre as crianças em idade escolar em Gaza durante os meses anteriores e posteriores ao início dos protestos na fronteira. A entidade detectou um aumento no percentual de estudantes que tem pesadelos. Os diretores de escola relataram ter visto mais incidentes violentos nas dependências da escola. 

 "Estas crianças já estão vivendo em uma situação inacreditável e as dificuldades que são cada vez maiores", disse Assad Ashour, coordenador de educação do NRC em Gaza. "Tudo o que está acontecendo em Gaza, todo o sofrimento, se refletirá nelas." 

Poucos recursos 

A crise foi agravada pela escassa disponibilidade de recursos públicos para a saúde mental em Gaza, onde o setor de saúde é lamentavelmente mal equipado. Também é agravada pelo estigma que os problemas psicológicos têm entre a sociedade palestina. 

O Ministério da Saúde da Palestina desenvolveu uma estratégia nacional de saúde mental, mas apenas uma pequena parcela do orçamento é dedicada à saúde mental. Os profissionais dizem que, por causa do bloqueio econômico, os hospitais de Gaza frequentemente enfrentam escassez de suprimentos importantes e remédios, incluindo drogas psicotrópicas.

Recentemente, em uma manhã, na sede do Programa Comunitário de Saúde Mental de Gaza na Cidade de Gaza, o assistente social Nedal al-Shamaly estava atendendo pessoas pelo telefone e lhes oferecia consultas gratuitas. Entre os que ligaram estava um pai preocupado com sua filha sonâmbula; uma viúva que desenvolveu ansiedade após seu marido ser morto na guerra de 2014 e uma mulher que queria se divorciar porque o marido abusou sexualmente dela. 

"Antes do cerco, tínhamos problemas econômicos. Tínhamos problemas sociais, mas não é como agora", disse Shamaly, que trabalha no centro há 15 anos.  "Havia alguma esperança antes, as pessoas podiam viajar e podiam administrar suas vidas", disse ele. "Mas agora, há uma completa falta de esperança."

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