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Policiais russos vigiam a Praça Vermelha, em Moscou, nesta terça-feira (27), com a Rússia ainda desnorteada pelos acontecimentos do fim de semana
Policiais russos vigiam a Praça Vermelha, em Moscou, nesta terça-feira (27), com a Rússia ainda desnorteada pelos acontecimentos do fim de semana| Foto: EFE/MAXIM SHIPENKOV

Após meses de atrito entre Yevgeny Prigozhin e o alto escalão das Forças Armadas da Rússia, o desfecho talvez menos esperado aconteceu: após um suposto ataque por parte de forças russas às posições do Grupo Wagner, seu líder teve o pretexto necessário para realizar uma insurreição e iniciou uma “Marcha pela Justiça” entre sexta-feira e sábado (23 e 24), constituída de um comboio militar que partiu da Ucrânia e chegou a uma distância de apenas 200 km de Moscou.

Durante o trajeto, o presidente Vladimir Putin apareceu em rede nacional para acusar Prigozhin de incitar uma “rebelião armada”, o que foi respondido com uma ameaça pelo líder mercenário. “O presidente está profundamente errado. Somos patriotas, e Putin fez a escolha errada. Pior para ele... logo a Rússia terá um novo presidente”, disse o líder do Wagner.

No momento em que as tropas lideradas pelo Ministério da Defesa russo faziam barricadas e obstruíam caminhos arteriais à capital, as forças mercenárias subitamente paralisaram seu avanço e deram meia-volta.

Comentando sobre o motivo de tal paralisação, Prigozhin disse que queria evitar o “derramamento de sangue russo”, embora até aquele momento suas tropas já tivessem derrubado seis helicópteros e um avião que servia de posto de controle aéreo.

No total, a estimativa de pilotos e controladores de voo mortos varia entre 15 e 22, tanto segundo fontes russas quanto ucranianas.  Em tal circunstância, o ditador de Belarus e aliado de Putin, Alexander Lukashenko, interveio e uma trégua foi estabelecida.

Deste modo, a rebelião terminou do mesmo modo como havia começado: com uma postagem no Telegram, na qual Prigozhin disse que daria meia-volta e aceitaria todas as condições impostas pelo Kremlin. “Neste momento, Alexander Lukashenko estendeu a mão e se ofereceu para encontrar soluções para o futuro trabalho do Grupo Wagner na jurisdição legal”, disse Prigozhin.

Da surpresa do “golpe” à surpresa do “acordo”

Desde que a guerra chegou a um quase impasse para as forças russas, no qual cada palmo avançado representava centenas de vidas, o líder do Grupo Wagner tornou-se um crítico feroz da condução dos esforços de guerra por parte do Estado-Maior da Rússia e um porta-voz de uma ala significativa nas altas esferas político-militares, insatisfeitas com a condução da guerra na Ucrânia.

No que talvez tenha sido o mais emblemático vídeo publicado por ele no Telegram, Prigozhin apareceu em frente a dezenas de cadáveres de soldados do Wagner, mortos em combate, proferindo ofensas intraduzíveis ao Ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e ao atual chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov.

Após a insurreição, o campo político-militar russo dividiu-se definitivamente em dois: uns considerando Prigozhin um patriota, enquanto outros, um traidor. Políticos, generais, empresários e até mesmo unidades, batalhões e soldados na linha de frente postaram, em canais do Telegram com milhões de seguidores, vídeos com juramentos de fidelidade até a morte a um dos lados.

Para Oksana Gumenna, tradutora de línguas eslavas e analista internacional com especialização em leste europeu, a popularidade nas mais diversas camadas da sociedade russa do levante coordenado por Prigozhin deve-se ao fato de ele representar uma espécie de alternativa ao Estado-Maior, visto como ineficiente e representante da elite militar corrupta da Rússia.

“Embora os alvos fossem Shoigu e Gerasimov, Putin terminou por sair com sua imagem bastante arranhada mesmo dentro da Rússia. Creio que ele irá se vingar, porém, esperará a poeira baixar para não instigar mais animosidades entre as partes em conflito”, disse a analista.

Uma sociedade partida ao meio

Ante as principais alegações de Prigozhin de que, sem o levante, o Grupo Wagner seria dissolvido e de que o staff do Estado-Maior precisava ser urgentemente remodelado, o acordo levou à efetiva dissolução de sua organização em todo o território russo (com a transferência de seu pessoal para Belarus) e a permanência de Shoigu e Gerasimov em seus devidos postos.

Segmentos político-militares que anteriormente apoiavam incondicionalmente o Wagner em seu conflito contra o Estado-maior russo passaram a chamar Prigozhin de covarde e traidor, pois se utilizou do levante armado como oportunidade para forçar um acordo com a “besta” que dizia combater.

Dentro das próprias unidades do exército russo, muitos soldados e aviadores se recusaram a obedecer às ordens de bombardear as posições rebeldes, colocando em risco os militares de suas próprias unidades e incorrendo no crime de insubordinação e, até mesmo, de traição.

“O comboio de wagnerianos não se movia no asfalto – movia-se através do coração das pessoas, partindo a sociedade ao meio”, resumiu o comandante militar russo Aleksandr Khodakovsky para 1 milhão de pessoas que o seguem em seu canal de Telegram.

Para Gumenna, o evento representou um constrangimento internacional para o governo de Putin, pois o apoio a Prigozhin foi surpreendentemente subestimado pelas altas cúpulas do poder. “A situação na forma como ela se delineou mostra que há uma profunda cisão no exército russo e talvez uma debandada ainda maior tivesse ocorrido se eles verdadeiramente tivessem a quem recorrer naquele momento”, explicou.

O retrato da sociedade russa que Oksana Gumenna apresenta pode ser encontrado também nas palavras de Khodakovsky. “Milhões de pessoas experimentaram o horror [...] e esses milhões jamais serão capazes de olhar novamente nos olhos daqueles que exultaram ao verem helicópteros sendo abatidos sem um julgamento”, disse ele.

O sentimento geral de desconfiança e ódio entre os próprios apoiadores da guerra já começa a ser visto em canais do Telegram, onde emergem vídeos de soldados que apoiaram ou se ausentaram durante o levante sendo sumariamente executados por seus pares, enquanto outros relatam torturas e abusos por parte de seus comandantes.

A analista concluiu que, se esta cisão permanecer, o próprio tecido social da Rússia poderia se romper. “Isto representaria o esfarelamento do esforço de guerra russo”, disse Gumenna.

A palavra do Kremlin e da mídia russa

Embora o Kremlin tenha dito que todos os que se envolveram na rebelião seriam anistiados, até esta terça-feira (27) nenhum dispositivo legal efetivo foi instituído para tal. O que há por enquanto são declarações contraditórias, como as que foram feitas em pronunciamento oficial por Putin nesta segunda-feira (26), no qual o presidente disse que os que se amotinaram eram ao mesmo tempo traidores e heróis e que eles foram enganados por seus superiores, mas a maior parte dos comandantes do Grupo Wagner consistiria de patriotas.

A síntese da contradição e da divisão que a sociedade russa vive atualmente pôde ser vista em primeira mão na primeira transmissão pós-motim do programa de Vladimir Solovyov, principal âncora do país. O apresentador justificou a decisão do presidente russo em deixar Prigozhin livre, apesar de já haver defendido a pena de morte para crimes muito menos graves.

Margarita Simonyan, editora da Russia Today (RT), complementou suas palavras dizendo que “os dispositivos legais não são como os Mandamentos de Cristo ou a Lei de Moisés”.

Em meio às palavras de apaziguamento por parte dos profissionais de mídia, o comandante militar aposentado e membro do parlamento russo Andrey Gurulyov disse: “Uma bala na testa é a única salvação para Prigozhin [...] e eu cumpro cada uma de minhas palavras!”.

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