Entrevista
"Essas questões não nos afetam"
Jornalista chinês anônimo
Um jovem jornalista televisivo chinês, que prefere não ter o nome divulgado, conversou com a Gazeta do Povo por telefone sobre o caso Google na manhã de sexta-feira, horas antes do anúncio da renovação da licença da empresa no país. Acompanhe:
O que você pensa sobre o caso Google?
A questão é que nós não sentimos muita diferença agora porque ainda temos outros tipos de mecanismos de busca para usar. E o Google continua disponível. A única diferença (em relação a outros países) é que, quando teclamos palavras sensíveis, não é possível encontrar o conteúdo.
Que tipo de palavras?
São várias categorias. Na política, é sempre difícil pesquisar. Você não encontra nada de ruim quando tecla o nome dos oficiais do governo, só coisas boas. Os maiores sites de pornografia foram fechados no começo do ano; e quanto a religião, podemos encontrar informação sobre as maiores, como catolicismo e islamismo, mas alguns grupos específicos são bloqueados.
É difícil ser jornalista assim?
Se queremos encontrar esse tipo de material, usamos servidores instalados fora do país. Basta encontrar um endereço IP e se conectar.
E não é perigoso veicular esse tipo de informação?
Temos regras rígidas, você não pode dizer qualquer coisa que queira. Temos um sistema hierárquico na televisão. O repórter sai para a rua e volta com suas matérias, que submete a um editor júnior. Este faz uma primeira versão do material para corrigir algumas coisas. Um editor sênior então checa muitas coisas, incluindo se a história é verdadeira ou pode causar tensão social. E eles precisam garantir que (a televisão) não terá problemas. Eles também checam se o repórter não fez algo ilegal, como, por exemplo, se está ajudando alguém que ele conhece por meio da matéria. Nesse caso, pode ter certeza que eles irão descobrir e bloquear o material.
Esse controle é satisfatório para você?
Para mim é ok, eu acho útil porque alguém me ajuda a garantir que não haverá problemas.
Você considera a briga do Google útil para o povo chinês?
Não, porque não tem nenhum efeito especial sobre nós. Não afeta a vida cotidiana nem profissional. Essas questões não nos afetam. Não é algo muito importante. (HC)
Para muitos, o Google perdeu uma oportunidade de "dar uma lição" à China ao continuar a operar no país após descobrir, no início do ano, que contas de e-mail de usuários seus, ativistas dos direitos humanos, haviam sido invadidas muito provavelmente, pelo próprio governo. Seguiu-se uma perrenga que envolveu ameaça de corte da licença de operação, mudanças técnicas e, na última sexta-feira, a volta à normalidade. Enquanto o vitorioso da briga é incerto, a grande perdedora é clara: a liberdade de expressão.
A renovação da licença do Google para operar na China, concedida na semana passada, não muda nada para quem usa internet no país asiático. Apesar de o redirecionamento de usuários para Hong Kong, iniciado em março, ter sido na prática autorizado pelo governo o que poderia parecer uma vitória da democracia , o esquema não representa qualquer ganho para o usuário chinês.
Hoje, quem acessa www.google.cn e tenta buscar algum termo precisa clicar numa grande área de link que leva o usuário virtualmente para Hong Kong (www.google.hk), onde não há censura.
O problema é que Pequim pode bloquear o acesso de chineses a qualquer site, caso a pessoa utilize um endereço IP (código que identifica o computador) do território chinês. "A China tem como saber quem é usuário chinês e bloquear o acesso da pessoa com base no conteúdo", diz o professor da escola de Direito da FGV Carlos Affonso Pereira de Souza. Algumas vezes o resultado da busca até aparece, mas o link é bloqueado.
Por outro lado, as mesmas brechas na censura continuam valendo: qualquer colegial chinês sabe acessar sites alternativos ("proxy") que transferem a navegação para um endereço IP fora do país, na tentativa de burlar a censura.
Da mesma forma, a China continua a ter alto poder de identificação. "Como experiência internacional de controle da internet, os chineses são os melhores, até porque o fazem com viés politico", diz Luiz Henrique Souza, especialista em Direito Digital do Patricia Peck Pinheiro Advogados.
Um complicador é que a questão da censura da China não depende apenas de tecnologia, seja para vigiar ou burlar, mas também da cultura. Na entrevista acima, um jornalista chinês bastante à vontade com a censura, conta, em conversa com a Gazeta do Povo, que considera o rígido controle da informação útil para manter a coesão social.
Alguns estudiosos de direitos humanos veem como compreensível que o povo chinês encare os direitos fundamentais, como liberdade de imprensa e de livre discurso, de forma diferente dos ocidentais.
"A China alega que, num país daquele tamanho, precisa censurar para manter a coesão social e evitar o caos. É difícil afirmar em que medida ela é realmente necessária", diz o coordenador do curso de Relações Internacionais do UniCuritiba, Juliano Cortinhas.
Para ele, a pressão que multinacionais possam exercer sobre esse esquema é basicamente retórica. "Nenhuma empresa iria deixar de investir na China por pressão política."
Ainda mais no caso do Google, que já detém 33% do maior mercado de navegação do mundo. São 384 milhões de internautas chineses, de acordo com o instituto iResearch. O maior site de buscas do país é o Baidu, com 63% de marketshare.
"Não acredito que ficaria muito feio para o Google voltar a filtrar conteúdos (por ordem do governo chinês), já que outros provedores passam pelos mesmos filtros", diz Luiz Henrique Souza.
"Para mim não é claro o impacto disso. Para o Ocidente, pode parecer uma forma de rebelião, mas não sei se é interessante uma empresa ditar valores e a forma como um povo deve se organizar."
Outros analistas acreditam que, por ser um provedor de informações que representa os Estados Unidos, paladino da democracia, o gigante da internet deveria ter sido mais firme. "Se o Google realmente quiser enfatizar sua bandeira, deve continuar a lutar o bom combate e usar sua coragem para tornar seu sistema impenetrável a ataques de forma que seus serviços possam melhorar a vida e o conhecimento do povo chinês", escreveu o editor Daniel Indiviglio para a revista The Atlantic em janeiro, após o início do conflito.
Por enquanto, nada muda para o internauta chinês, e pior: o caso não parece ter servido para fortalecer a defesa da liberdade de informação.
Ao menos, o debate "mostra que a ideia de que a internet é uma terra sem fronteiras é cada vez menos verdadeira", avalia Carlos Affonso Pereira de Souza. "Os governos conseguem trazer para dentro da internet as suas limitações territoriais."
Se a China está ladeada por Irã, Tailândia, Egito e Cuba, que também aplicam algum tipo de censura, significa que a internet ainda está longe de promover a real democratização da informação.
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Interatividade
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