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Colapso

Na capital venezuelana do petróleo, até morrer é difícil

Caixão aberto por ladrões no cemitério Sagrado Corazón de Jesus na Venezuela (Foto: Michael Robinson Chavez / Washington Post)

Esgotaram-se os analgésicos e antibióticos do hospital, o que deixou Neiro Vargas em sofrimento angustiante. O segurança de 43 anos foi levado com um tiro no pescoço. No sétimo dia, seu coração não aguentou.

Mas em Maracaibo, as indignidades da vida não terminam mais com a morte.

Uma queda livre econômica mais severa do que a Grande Depressão paralisou esta que já foi uma próspera cidade petrolífera, e aqueles que permaneceram estão se preparando para o pior sob novas e penosas sanções dos EUA. A segunda maior cidade da Venezuela - e seu motor industrial - agora é o epicentro do colapso social da nação socialista.

O colapso da civilização aqui é talvez mais evidente na morte.

Na tarde em que Vargas morreu, o Hospital Universitário de Maracaibo, sofrendo com as mesmas quedas de energia que assolavam o resto da cidade, estava sufocantemente quente. Sua família carente não podia pagar por um funeral. Então os médicos enviaram seu corpo para o "porão". O necrotério sem ar-condicionado.

Mesmo quando a energia retorna, nenhum dos oito freezers do necrotério funciona. Em uma manhã recente, insetos cobriam os sete corpos em decomposição deixados em placas e no chão. Um bebê morto apodrecia em uma caixa de papelão.

Enquanto as temperaturas nessa cidade tropical passavam de 30 graus Celsius, o cadáver de Vargas passou três dias no necrotério, enquanto sua esposa, Rossangelys, arrumava dinheiro emprestado para pagar por um caixão improvisado e transportá-lo para sua casa. Na sala de estar da família, em uma parte sem lei da cidade repleta de casas abandonadas, a família realizou um triste velório. O caixão estreito e preto estava sobre dois suportes de metal. Os enlutados desviavam os olhos do rosto infestado do falecido. Rossangelys tentou, mas não conseguiu, controlar o cheiro vedando os buracos na madeira do caixão.

Eles não podiam arcar com nenhum plano de enterro. Então eles desenterraram os ossos do irmão de Vargas, morto há muito tempo, de um cemitério local repleto de caixões quebrados profanados por ladrões.

Rossangelys chorou no local de descanso do marido. O caixão removido do irmão de seu marido estava em ruínas nas proximidades.

"Estou apenas sentindo muita raiva", disse ela. "Muita raiva pelo que temos que passar agora nesta cidade, neste país. Se um membro da família morre, não podemos enterrá-lo com dignidade. Como isso pode ser a nossa realidade?"

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Estabelecimentos fechados no centro de Maracaibo, Venezuela

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Crianças brincam em uma praia poluída à margem do Lago Maracaibo

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Caixão aberto por ladrões no cemitério Sagrado Corazón de Jesues na Venezuela

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Quiosque de lanches vazio em uma rua que já foi movimentada em Maracaibo, Venezuela

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Ruas escuras durante um apagão em Maracaibo, Venezuela, maio de 2019

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Homem passa pela orla contaminada do Lago Maracaibo, Venezuela

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Pescador fuma após trabalhar no Lago Maracaibo, Venezuela

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Vazamentos de óleo são abundantes e perigosos na cidade de Cabimas, do outro lado do Lago Maracaibo, Venezuela

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Prédios em Maracaibo, Venezuela

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Pessoas enbarcam em um ônibus dilapidado em La Curva, mercado ao ar livre em Maracaibo, Venezuela

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Pessoas se refrescam do calor e da umidade nas águas poluídas do Lago Maracaibo, Venezuela

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Molduras vazias penduradas em uma parede do Museu de Arte Contemporânea em Maracaibo, Venezuela. As pinturas foram roubadas

Cidades fantasmas

Maracaibo, a "Terra Amada do Sol", era uma cidade que colecionava feitos inéditos. A primeira cidade venezuelana iluminada por eletricidade. A primeiro a abrir um cinema. Em 1914, as Concessões de Petróleo da Venezuela encontraram petróleo na costa leste do Lago Maracaibo, o estuário caribenho rico em petróleo que passa às margens do horizonte irregular da cidade.

O petróleo mudaria tudo.

Um porto regional floresceu e se transformou em uma metrópole de 2,6 milhões de pessoas. Em 1950, o estado de Zulia - que tem Maracaibo como capital - representava mais da metade do PIB da Venezuela. Alimentada por doadores ricos, sua vida cultural prosperava. Maracaibo ostentava três orquestras sinfônicas e o maior museu de arte contemporânea do continente.

Mas a depressão que começou aqui em 2013 acelerou e se tornou um colapso, o produto da queda dos preços do petróleo, políticas socialistas fracassadas, má administração e corrupção. Em 2008, quando os preços e a produção estavam altos, o petróleo de Maracaibo estava gerando US$ 138 milhões por dia, estima-se. A produção caiu para cerca de US$ 8,5 milhões.

Segundo algumas estimativas, cerca de 700 mil habitantes - quase um terço da população metropolitana - abandonaram a área em três anos, juntando-se ao êxodo maior de migrantes famintos que fogem da Venezuela.

A rede elétrica nacional da Venezuela está falhando e a produção de petróleo do país está em colapso. Um país abençoado com as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo está sofrendo severa escassez de gasolina.

O governo de Nicolás Maduro, falido e enfraquecido, tentou proteger a capital, Caracas, do pior da crise. Em uma troca, o governo deixou Maracaibo cair.

Desde janeiro, a eletricidade aqui é racionada com o limite máximo de 12 horas por dia - quando há energia. As filas para gasolina se estendem por mais de um quilômetro; as esperas duram até dois dias. A fila para a bomba na Rua da Universidade, em uma tarde recente, tinha 86 carros. Em um mercado de rua, um professor universitário desesperado tentava vender seus pertences - camisetas, jeans, um abajur - por comida.

No extenso Museu de Arte Contemporânea de Zulia, foram roubados canos e pias de banheiro, assim como impressoras, computadores, equipamentos de áudio e um caminhão. Os cabos telefônicos também foram retirados - tornando quase impossível fazer ligações de telefones fixos.

O salão principal do museu foi trancado, um vazamento no teto forma poças de água estagnada. Em meio a uma crise orçamentária, a equipe caiu de 150 funcionários para 14 - e metade deles são estagiários não remunerados. Uma dúzia de palmeiras exóticas morreu porque o jardineiro do museu emigrou.

A Orquestra Sinfônica de Maracaibo, sem poder cobrir a sua folha de pagamento, passou de 90 para 11 membros.

"Nossos músicos foram embora", disse uma música, que falou sob condição de anonimato porque tem medo de represálias do governo. "Eles estão tocando no metrô em Buenos Aires, ou nas ruas de Lima e Quito, em troca de moedas".

Ela tentou impedir que as lágrimas caíssem.

"Não temos mais músicos em número suficiente para tocar Beethoven", disse ela. "Esta tem sido a minha vida inteira. É tão difícil vê-la desmoronar."

A maioria dos semáforos da cidade está apagada - por falta de eletricidade, mas também de peças de reposição. Isso é menos perigoso do que poderia ser, porque com a fuga de tantas pessoas, há muito menos carros e quase nenhum ônibus urbano.

Alguns bairros são efetivamente cidades fantasmas. Os seis jornais de Maracaibo fecharam.

Em março, saqueadores desesperados arrombaram mais de 500 estabelecimentos - supermercados, lojas de eletrônicos, hotéis. Muitos nunca reabriram. A câmara de comércio do estado de Zulia diz que 30 mil negócios fecharam em 10 anos. Centenas ainda estão sendo fechados a cada semana.

"Maracaibo era uma cidade de luzes, uma cidade com vida noturna, uma cidade próspera abençoada pelo sol do Caribe", disse Eveling Trejo de Rosales, ex-prefeita de Maracaibo. "Agora, somos uma cidade morta. Um estado zumbi. E aqueles entre nós que ficaram aqui são homens mortos caminhando."

Cemitério de poços de petróleo

José Moreno pilotou seu barco em direção ao centro do Lago Maracaibo. O pescador de 31 anos apontou para as cascas enferrujadas de brocas de petróleo que foram construídas para extrair petróleo do leito do lago.

"Este é o cemitério dos poços", disse ele.

Esse corpo de água maior que a cidade de Manaus já foi a salvação econômica da Venezuela. Agora é um desastre ambiental. A grande maioria dos milhares de poços de petróleo que ocupam o lago está quebrada e inútil. O petróleo bruto e o gás natural borbulham até a superfície. O jato de água da lancha de Moreno mancha as roupas de preto.

Ele examinou o lago. "Está destruído."

A indústria petrolífera venezuelana foi construída com base no petróleo leve de Zulia. O centro mudou há duas décadas para o petróleo mais espesso do Cinturão do Orinoco, mais ao sul, mas o lago Maracaibo permaneceu vital para a economia nacional.

Seu declínio é um dos capítulos da história. No início dos anos 2000, Hugo Chávez, o falecido pai do estado socialista da Venezuela, quebrou os sindicatos da companhia estatal de petróleo PDVSA. Engenheiros, trabalhadores de plataformas e gerentes treinados foram substituídos por nomeados políticos. Eles afundaram a empresa.

Em 2008, quando os preços globais do petróleo caíram, Chávez nacionalizou as empresas que forneciam suprimentos, mantinham e ofereciam transporte para as perfurações do lago.

À medida que o governo de Maduro afundava ainda mais em seu buraco financeiro, os reparos foram diminuindo e depois praticamente pararam.

Maduro reivindicou a vitória no ano passado em uma eleição amplamente vista como fraudulenta. Os Estados Unidos e o Brasil têm apoiado a oposição da Venezuela em seus esforços para derrubar Maduro e realizar novas eleições.

Os Estados Unidos eram o maior comprador de petróleo venezuelano. Em janeiro, o governo Trump proibiu as empresas americanas de comprar o petróleo.

Para uma indústria que já estava chegando ao ponto de ruptura, foi como derramar água quente em queimaduras de terceiro grau.

Zulia produzia 1,55 milhão de barris por dia em 2001, de acordo com a Caracas Capital Markets, uma empresa sediada em Miami que focada na indústria de petróleo venezuelana. Em 2018, a produção havia caído para 250 mil barris. Cinco mil poços estavam operacionais no lago em 2002. Hoje, dizem os trabalhadores sindicais, menos de 400 estão funcionando.

O governo Trump, neste mês, ampliou o embargo, bloqueando todas as propriedades e ativos do governo e de seus funcionários e proibindo quaisquer transações com eles, o banco central ou a empresa estatal de petróleo.

Jaime Acosta trabalhava para um empresa particular contratada da PDVSA que operava seis perfuradores de petróleo. A empresa fechou há dois meses porque a companhia estatal de petróleo não estava pagando o contrato.

"Eu concordaria com as sanções se elas nos ajudarem", disse Acosta, 62 anos. "Mas, para ser sincero, neste momento, as sanções estão apenas piorando".

Sem seu salário, ele disse que sua esposa e filhos foram para a Colômbia em busca de trabalho.

"Em Zulia, nós, os trabalhadores do petróleo, éramos quem comandava a economia", disse ele. "Agora nossas famílias estão destruídas."

Violência e outros assassinos

À sombra dos arranha-céus meio vazios de Maracaibo, fica a favela de Altos de Milagro Norte.

Quatrocentas famílias - um terço dos moradores - foram embora nos últimos meses, e o êxodo está se acelerando. A hiperinflação colocou fora de alcance todos os alimentos e medicamentos mais básicos, e aqueles que permanecem ficaram magros, com fome e doentes. Na ausência de um governo que funcione, gangues e ladrões governam o bairro.

Neiro Vargas, o segurança, estava voltando para casa do seu turno noturno de 14 horas quando foi atingido no pescoço por uma bala perdida. Ele estava a uma quadra da porta de sua casa.

"O governo não faz nada", disse a esposa de Vargas, Rossangelys Olivares. "Ele simplesmente não se importa conosco."

A violência não é o único assassino. A escassez de energia e o agravamento da falta de acesso à água corrente não são apenas inconvenientes - são perigos potencialmente mortais.

Os pais, sem poder dar banho em seus filhos com água e sabão, estão lutando para combater um surto de sarna. Somente neste ano, 16 pessoas morreram no bairro, dizem ativistas comunitários, incluindo idosos e crianças com doenças causadas ou agravadas pela falta de água potável, energia inconstante e calor implacável.

A três quadras da casa de Vargas, os vizinhos assistiram em uma tarde recente um pequeno grupo de pessoas carregar o corpo de Tiany Chacin, de 11 anos, para dentro de sua casa, em um caixão improvisado com pedaços de móveis antigos.

Um parasita estomacal atingiu seu cérebro. Antes de morrer, disse a mãe, a menina estava vomitando vermes.

Este ano, sua família quase não teve acesso à água potável, disse sua mãe, Yulimar Chacin, 33 anos. Eles só conseguiam beber a água de uma valeta estagnada. Como o gás de cozinha é escasso e caro, disse Chacin, ela nem sempre pode se dar ao luxo de fervê-la.

"Não tínhamos outra maneira, nenhuma outra maneira de obter água", disse ela.

"Aqui é uma escuridão", disse a mulher magra entre soluços. "Nós estamos sozinhos."

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