Pena do bolívar, moeda da Venezuela, oficializada depois do herói da independência, Simón Bolívar. Nem mesmo alguns ladrões a querem mais.
Quando ladrões atacaram o engenheiro Pedro Venero em seu carro, no início do ano, ele achou que seria levado até seu banco para sacar alguma grande quantia de bolívares — tipo de coisa com a qual os venezuelanos já estão acostumados há muito tempo. Mas os ladrões, armados com rifles e uma granada, com a certeza de que ele teria alguns dólares guardados em casa, não queriam saber da conta no banco.
A urgência em abrir mão dos bolívares ou evitá-los completamente mostra a proporção da perda de fé dos venezuelanos na própria economia e na falta de habilidade do governo de encontrar um jeito de sair do caos.
Um ano atrás, um dólar comprava cerca de cem bolívares no mercado negro. Atualmente, ele costuma conseguir mais de 700 — um sinal do quanto a confiança doméstica foi abalada pela crise econômica.
O Fundo Monetário Internacional previu que a inflação venezuelana vá atingir 159% este ano — o presidente Nicolás Maduro afirma que será metade disso — e que a economia vai encolher 10%, a pior performance do mundo (mas o projeto não conta com estimativas para Síria em guerra).
Esse seria um resultado desastroso para o país que ampara as mais valorizadas reservas de petróleo e vinha se considerando rico há anos, em contraste com muitos de seus vizinhos.
Loucura cambial
Mas a história real está acima dos números, em meio aos absurdos da vida de um país em que o governo vem se recusando há meses a divulgar seus relatórios básicos de economia, como a taxa de inflação e o produto interno bruto.
Ainda que o crescimento interno do país tenha encolhido com o colapso nos preços do petróleo — principal exportação da Venezuela — e o mercado negro por dólares tenha crescido, o governo insiste em manter a principal taxa de câmbio do país em 6,3 bolívares para cada dólar.
A disparidade absurda faz com que a economia se torne um choque, em que se torna difícil ter certeza de que qualquer coisa valha a pena, e o dólar seja cada vez mais ditado pelo mercado negro.
Um ingresso de cinema custa cerca de 380 bolívares. Calculando pela taxa oficial do governo, significa US$ 60 (R$ 236). Na taxa do mercado negro, custa US$ 0,54 (pouco mais de R$ 2). Uma pipoca grande e um refrigerante para acompanhar, dependendo da taxa escolhida, pode custar US$ 1,15 (R$ 4,50) ou US$ 128 (R$ 504).
O salário mínimo é de 7.421 bolívares por mês. Isso pode representar decentes US$ 1.178 (R$ 4.600) ou miseráveis US$ 10,60 (R$ 41).
De acordo com o Centro de Documentação e Análises Sociais da Federação Venezuelana de Professores, os gastos mensais de comida para uma família de cinco pessoas giraram em torno dos 50.625 bolívares em agosto, mais de seis vezes o valor do salário mínimo e mais de três vezes o custo no mesmo mês, um ano antes.
Inflação estratosférica
A inflação atingiu níveis tão drásticos que companhias de seguro ameaçaram emitir apólices com data de expiração para seis meses, para minimizar os riscos de elevação dos preços de peças de carros. Um galão de tinta branca custava cerca de 6 mil bolívares em uma terça-feira recente. A mesma loja na sexta-feira seguinte o anunciava por 12 mil.
Com eleições legislativas cruciais marcadas para dezembro, o governo começou a fazer refrigeradores, ares-condicionados e eletrodomésticos exclusivos para funcionários do governo e membros do partido, a preços de custo.
Um funcionário disse que comprou uma TV de plasma chinesa de 48 polegadas por 11 mil bolívares — ou apenas US$ 15,71 (R$ 61), na taxa paralela.
Maduro culpa uma “guerra econômica” articulada por seus inimigos, externos e internos. Mas a maioria dos economistas diz que os problemas são causados pela queda nos preços do petróleo e pelas políticas do governo, incluindo controles rígidos nos preços e trocas internacionais nas importações.
Com a crise agravada, Maduro hesitou em fazer mudanças que até mesmo altos funcionários dizem serem necessárias, como o aumento do preço da gasolina, cujos subsídios são tão pesados que chega a ser virtualmente gratuito — talvez porque estejam com receio de uma quebra às vésperas das eleições.
A rotina diária se tornou ainda mais estranha. Muitos venezuelanos largaram seus empregos para vender bens de necessidade básica, como fraldas descartáveis ou farinha de milho no mercado negro, triplicando ou quadruplicando seus salários no processo.
Caixas eletrônicos limitam os saques ao que, no mercado negro, seria equivalente a 50 centavos de dólar.
Com a rede de subsistência básica se tornando crônica, supermercados e farmácias lotam longas prateleiras com um mesmo produto. Uma loja chegou a ter suas duas paredes laterais repletas por embalagens de sal. Outra fez a mesma coisa, mas com vinagre. Uma farmácia tinha seções e mais seções de cotonetes.
Mas dentre todos os estoques, um dos mais notáveis é o de notas de dinheiro, especialmente a cor de café com o retrato de Simón Bolívar, de 100 bolívares, que são as mais presentes na circulação geral -- no mercado negro, avaliadas em US$ 0,14 (R$ 0,55).
Segundo Ruth de Krivoy, ex-presidente do Banco Central, o principal problema do país é a falha nas reações ao rápido crescimento dos preços, com emissões de grandes contas de denominação, como as notas de 1.000 ou 10.000 bolívares. Assim, as pessoas precisam de muito mais notas para comprar os mesmos produtos que compraram um ano atrás.
Além disso, assim como as pessoas recorrem ao mercado negro para comprar bens que não podem ser encontrados nas lojas, transações que antes poderiam ser feitas com débito ou crédito agora são conduzidas com dinheiro em espécie.
Isso cria problemas logísticos, porque os bancos precisam mover enormes quantidades de notas e os caixas eletrônicos se esvaziam mais rapidamente.
“É uma falácia acreditar que, ao imprimir notas maiores, eles conseguiriam controlar ou validar a inflação e os preços mais altos”, disse Kriovy.
Certamente, Maduro está ciente do impacto simbólico de se emitir notas com mais zeros — e a inevitável comparação com seu precedente e mentor, Hugo Chávez. Em 2008, ele emitiu novas notas e alavancou três zeros a mais na moeda que já vinha sofrendo desvalorização e inflação há muito tempo, renomeando-a para ‘bolívar forte’. Hoje, o bolívar não tem nada de forte.
Recentemente, o mecânico Jaime Bello foi até sua agência do Banco del Tesoro — administrado pelo governo — para descobrir que os três caixas eletrônicos estavam sem dinheiro.
Ele solicitou uma visita antecipada quando foi sacar 2 mil bolívares e ficou esperando enquanto ouvia a máquina contar as notas. Para seu espanto, ela cuspiu uma quantidade imensa de notas de 5 bolívares, cada uma valendo menos que um centavo americano. Ele pegou seu montante de 200 notas e continuou esperando pelas próximas 200.
“É loucura. Estamos vivendo um pesadelo. Não há nada para comprar e o dinheiro não vale nada”, lamentou.