Desde a eclosão dos protestos contra o ditador Nicolás Maduro no mês passado, Flor Blanco, uma costureira de 57 anos, discutiu repetidamente com o marido sobre uma questão no centro da crise: o socialismo matou a Venezuela?
Abençoado com as maiores reservas de petróleo do mundo, esse país sul-americano já foi o mais rico per capita da região. Vinte anos após a implantação da Revolução Bolivariana do falecido Hugo Chávez, agora é um dos mais pobres. O marido de Blanco, um defensor de Maduro – sucessor ungido de Chávez, ainda diz que o socialismo é o grande equalizador da sociedade que deu dignidade aos pobres. Mas como mais e mais venezuelanos, Blanco está questionando não apenas um homem – Maduro – mas um modelo econômico.
“O meu marido não vê a realidade”, disse ela, apontando irritada para os ossos da face, magros por falta de comida. “Olhe para nós – estamos magros. Não podemos comprar comida ou roupas. Socialismo? Para mim é uma farsa”.
Na terça-feira (12), os venezuelanos marcharam no mais recente de uma onda de protestos para derrubar Maduro – um teste crítico para a viabilidade de uma revolta doméstica que é vigorosamente apoiada pelo governo Trump. Em Washington, o debate se concentrou tanto no socialismo quanto nas falhas de Maduro.
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Mas o papel do socialismo no colapso da Venezuela, dizem observadores, não é tão claro quanto qualquer um dos lados gosta de pensar. Pelo menos de maneira efêmera, as políticas socialistas sustentadas pelos petrodólares do Estado ajudaram a reforçar o status do país como uma das sociedades mais equitativas do Ocidente. Mas as políticas de Estado pesado que distorceram os preços e as taxas de câmbio, juntamente com a corrupção, a má administração e a repressão oficial, transformaram a paisagem econômica da Venezuela em terra arrasada.
Talvez piorada pela administração de Maduro, especialistas dizem que a reviravolta econômica era inevitável.
“Todos os erros foram criados sob Chávez”, disse Henkel Garcia, diretor da Econométrica, empresa de análise financeira com sede em Caracas. “A economia só sobreviveu por tanto tempo por causa dos altos preços do petróleo”.
Entre os venezuelanos que estão indo às ruas, muitos rejeitaram o socialismo e Maduro por anos, e sentem que é o momento histórico para livrar a Venezuela de ambos.
Mas outros ainda o veem simplesmente como um administrador incompetente dos ideais de extrema esquerda de Chávez. Eles querem que ele – mas não o socialismo – desapareça.
Hoje, cerca de um terço da nação, dizem pesquisas, ainda parece apoiar o socialismo – embora apenas metade deles permaneça fiel a Maduro.
“Chávez cometeu erros, mas ele tinha uma verdadeira convicção social”, disse Juan Barreto, prefeito da cidade de Caracas durante os anos de Chávez, que rompeu com Maduro há três anos. “O sistema de Maduro não tem absolutamente nada a ver com o socialismo. Maduro, simplesmente, é um déspota”.
Com a hiperinflação causando escassez aguda de alimentos e remédios, cada vez mais ex-chavistas, adeptos dos ideais de Chávez, estão fazendo mea culpas e cada vez mais se voltando contra Maduro.
“Antes de morrer, quero que o socialismo tenha desaparecido da Venezuela”, disse Yessid Merlano, um garçom de 50 anos.
“A conta chegou”
Quando Chávez subiu ao poder pela primeira vez em 1999, os venezuelanos enfrentaram uma recessão inicial. Mas de 2003 a 2007, Chávez presidiu sobre um período de crescimento robusto, em grande parte devido aos fortes preços globais do petróleo. A economia despencou novamente quando os preços do petróleo caíram e Wall Street entrou em colapso em 2008, mas as retrações do fim da era de Chávez foram relativamente curtas e amenas – nada como o que a Venezuela está vivendo agora.
Merlano foi atraído pela promessa de um paraíso para os trabalhadores. Apoiando-se nos programas de Chávez para ajudar os pobres, ele tirou sua família da favela e se mudou para um complexo de apartamentos construído pelo governo, com jardins cheios de hibiscos e vista para as montanhas. Os preços regulados e uma moeda artificialmente forte permitiram que sua família de três pessoas jantasse com estilo diante de sua nova TV de tela plana.
Mas, ele disse, sob Maduro, a conta chegou.
A escassez de alimentos e remédios surgiu pela primeira vez anos atrás, mas agora ela é tão crônica que ele e milhões de outros venezuelanos perderam peso e procuraram trabalho no exterior. Antes de retornar a Caracas no ano passado, ele passou 10 meses trabalhando como operário na vizinha Colômbia, “onde só o que via eram venezuelanos mendigando pelas ruas”, disse ele.
“Eu me senti culpado por ter sido um chavista”, disse ele. “É tudo minha culpa, todo o sofrimento”.
Um Estado quase policial, a Venezuela é uma prima distante e cruel do socialismo europeu. Não há como compará-la com a assistência médica gratuita do Canadá ou com altas taxas de impostos francesas.
Mas ela também não é Cuba ou a Coreia do Norte comunista, onde o investimento estrangeiro e a propriedade privada são estritamente limitados. Embora muitos deles tenham fugido do país, venezuelanos endinheirados ainda possuem empresas privadas e mansões cercadas por muros altos em bairros de elite. Eles jogam golfe em clubes de campo e pagam impostos relativamente razoáveis de 34%. Os McDonald's e Domino's também podem ser encontrados aqui e ali.
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Alguns dizem que é simplesmente errado determinar o colapso em um sistema econômico. Durante a era Chávez, por exemplo, a Bolívia também abraçou estruturas de um Estado pesado sob o presidente esquerdista Evo Morales, e testemunhou um período sustentado de crescimento econômico.
“Eu não compro o argumento de que ‘o socialismo que causou isso’; esse é um joguete político dos EUA”, disse Moisés Naím, membro do Carnegie Endowment for International Peace, que foi ministro da Indústria e Comércio da Venezuela em 1989. “A Venezuela também teve corrupção e inaptidão. Não foi apenas a nacionalização e a tomada de empresas, mas a criação de um sistema que faliu os setores público e privado”.
Maduro tem insistido que a crise humanitária é fabricada pela imprensa estrangeira, enquanto culpa seus inimigos – principalmente os Estados Unidos – pela imposição de severas sanções à venda de petróleo no mês passado que prejudicarão a nação. Os críticos do governo, no entanto, dizem que as terrivelmente mal administradas políticas de Estado se tornaram uma ferramenta para manter os socialistas no poder, destruindo o país no processo.
Acusando a Venezuela de ser um “estado mafioso”, o secretário de Estado americano Mike Pompeo disse à ONU no mês passado que “as políticas fracassadas, a opressão e a corrupção do regime de Maduro roubaram o futuro [da Venezuela]”.
O sistema de saúde estatal, que já foi um dia o orgulho dos socialistas, entrou em colapso quando a hiperinflação e os recursos cada vez mais reduzidos deixaram os hospitais com escassez de seringas e antibióticos, bem como equipamentos quebrados, caros demais para serem consertados. Quando o governo ficou sem dólares, cortou as importações de medicamentos e passou a dever dinheiro a empresas farmacêuticas e de equipamentos, a maioria das quais fechou ou deixou o país.
A redução dos recursos e a hiperinflação estavam ligadas à implosão da força vital da Venezuela: a indústria do petróleo.
Nos anos 2000, Chávez expurgou gerentes, engenheiros e técnicos qualificados da estatal petrolífera PDVSA, e a lotou de partidários do governo. Isso preparou o cenário para uma falha catastrófica enquanto os preços globais caíram em recordes históricos. A produção venezuelana de petróleo está agora nos níveis mais baixos desde os anos 1950.
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As indústrias nacionalizadas por Chávez, que expropriou 1.500 empresas, entraram em colapso, com os preços regulamentados distorcendo os mercados. Em duas décadas, o governo confiscou quase 5 milhões de acres de terras agrícolas produtivas que agora estão em grande parte abandonadas. Em 1999, havia 490.000 empresas privadas na Venezuela. Em junho passado – a contagem mais recente disponível – esse número havia caído para 280.000.
“Eu culpo o modelo deles de socialismo do século 21 que gerou perseguição contra empresários”, disse Carlos Larrazábal, diretor da Fedecamaras, uma associação de indústrias venezuelanas.
Desilusão
Silvana Aguirre, de 40 anos, moradora da favela de Petare, no leste de Caracas, acreditava fervorosamente em Chávez, mas rejeitou Maduro quando a Venezuela começou a entrar em crise em 2015.
Os protestos explodiram recentemente em Petare, levando a uma violenta repressão no final de janeiro pelas forças de segurança pró-governo.
“Quando Chávez venceu, as coisas melhoraram para muitos de nós”, disse ela. “Mas então a revolução falhou. Foi destrutivo. Nós nunca tivemos dificuldades o quanto estamos tendo agora”.
A desilusão está sendo sentida até mesmo nas ruas estreitas da favela de 23 de Enero, onde o mausoléu de Chávez repousa no alto de uma colina. Após sua morte em 2013, os residentes enlutados da comunidade construíram um santuário para seu eterno comandante.
Mas enquanto os protestos contra Maduro estouravam nas últimas semanas, o som dos manifestantes ecoou alto o suficiente para chegar aos ouvidos dos soldados que guardavam o túmulo de Chávez.
“Socialismo”, disse um vendedor de rua de 61 anos, que falou sob condição de anonimato porque teme represálias do governo. “Essa palavra, as pessoas não acreditam mais nisso”.
O bairro ainda tem fieis vestindo camisa vermelha que são contra a oposição liderada por Juan Guaidó. Seus aliados incluem partidos políticos, eles dizem, que ignoraram os pobres antes da ascensão de Chávez – um líder que, ao contrário de Maduro em 2017, é visto como tendo legitimamente conquistado suas vitórias em eleições relativamente livres e justas.
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“Guaidó deveria ir para os EUA”, disse Elizabeth Torres, 54 anos, guardiã de um santuário religioso erguido para um homem que ela chama de “Santo Chávez”. “Tudo o que ele faz é cumprir as ordens [dos EUA], então por que ele está aqui? Antes de Chávez, não tínhamos dinheiro suficiente. Agora as coisas estão ruins, mas não é culpa do governo. É por causa de todos esses ataques [estrangeiros]”.
Outros ainda permanecem leais em parte por medo – medo dos criminosos pró-governo que governam as ruas em motocicletas, de perderem um sistema que lhes dá subsídios para suprimentos que estão minguando, e de uma oposição que eles dizem que buscará retaliação contra Chavistas, apesar de suas promessas de anistia.
“Eu apoio Maduro porque ele é o presidente”, disse Maria Alejandra Sanchez, uma jovem mãe segurando seu filho de um ano na frente do santuário de Chávez. “Mas ele não é como Chávez, não, não mesmo. Olhe para mim agora? Eu pareço uma mendiga. Eu não tenho dinheiro suficiente para nada. Não tenho nada para o meu bebê comer hoje. Tudo que posso fazer é ir para casa, chorar e ficar deprimida”.