É difícil imaginar uma expressão ganhando força tão rápido: em questão de dias, “Brexit”, termo formado pela soma entre as palavras “Britain” e “exit”, saiu da mais completa insignificância para a boca de pessoas em todo o mundo. Também ganhou os dicionários da língua inglesa – foi devidamente entronizado, por exemplo, nos compêndios de Oxford e Cambridge – e passou a simbolizar um momento crucial da história da Europa recente.
Um momento, em certa medida, quase tão estranho quanto o próprio neologismo, quase tão inusitado quanto a hipótese de se imaginar um país central ao capitalismo avançado, à Europa Ocidental e ao modelo de welfare state, dando adeus democrática e oficialmente a um paradigma de paz e união tão duramente cultivado no pós-guerra. O Brexit, enfim, foi um tiro em certas crenças - e a afirmação veemente, na forma de nacionalismo, de incômodo em relação a determinados fatores da realidade.
Como no caso do Brexit, também convivemos com outros aparentes “inusitados” como Donald Trump, Vladimir Putin, Marine Le Pen e os radicais do Estado Islâmico e do Boko Haram. Figuras que, por sua força e apelo junto a certos públicos, parecem mostrar que inusitados, mesmo, são os que achavam que formas radicais de pensar estavam fadadas ao desaparecimento.
O medo reativo
“Neste momento, estamos vendo a fratura e a desatualização de uma representação humanista romântica que foi construída pelo próprio Ocidente no pós-guerra”, avalia Agustin Espinosa Pezzia, doutor em Psicologia e membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia Política da Pontifícia Universidade Católica do Peru (Lima), responsável por alguns dos mais relevantes estudos recentes sobre nacionalismo e identidade nos países da América Latina (*).
Essa fratura – “na verdade, a revelação de uma violência própria da tradição cultural do Ocidente, como é possível perceber ao examinar a História”, observa Espinosa –, surgiria como resposta de parte das sociedades ocidentais à ameaça do “outro”, figura tremendamente ameaçadora, materializado em todo aquele que se situa fora das representações médias, para o homem branco e de classe média, do que é “humano” e do que é “bom”.
No século 21, esse “outro” emerge nas figuras do refugiado, do imigrante, do crente de uma religião que não seja a minha, do negro, do indígena, da mulher, do homossexual e de todos aqueles que, em termos políticos, se situem fora de uma zona de adesão (exemplo paroquial: o ódio nas execráveis representações de “coxinhas” e “petralhas”). “Essas figuras, que ganharam relevância por uma série de fatores, confrontam os limites do próprio humanismo, uma vez que indicam que esse humanismo é relativo, que a empatia ocidental não se estende a todos os seres humanos”, diz Espinosa.
Gerenciando o terror
É nesse contexto que emergiria a adesão ao autoritarismo, materializada em certos políticos carismáticos ou em um nacionalismo que seria apenas piegas se não viesse acompanhado pela xenofobia e a aceitação da violência como meio legítimo de ação.
“As pessoas se sentem ameaçadas e se voltam a posições mais conhecidas e radicais. E, em busca de segurança, aceitam ceder parte de sua própria individualidade a líderes fortes que, em tese, seriam mais capazes de protegê-las”, observa Espina, tomando como referencial a chamada “Teoria do Gerenciamento do Terror” (“Terror Menagement Theory” ou TMT), popular desde os anos oitenta do século passado no contexto da Psicologia Social.
Segundo a teoria, que tem como princípio as ideias expressas pelo antropólogo Ernest Becker no livro “A Negação da Morte” (“The Denial of Death”, prêmio Pullitzer de 1974 na categoria Não Ficção Geral), os indivíduos se agarram a visões de mundo e a sistemas de crenças buscando suprimir o próprio medo da morte. Nesse processo, eles também devem sentir que estão contribuindo para reforçar e dar vida a essas visões de mundo e sistemas de crenças.
Algo que, no contexto do Brexit, surgiu como afirmação de nacionalismo e expansão dos limites do “outro ameaçador”, que, em certa medida, passaram a incluir uma União Europeia vista como incapaz de lidar com as questões dos refugiados, da segurança doméstica e da economia de países como Grécia e Portugal. Sobrou, em síntese, até para aqueles que, ainda ontem, eram considerados “o meu semelhante”.
Além do medo
Para Agustin Espinosa Pezzia, não há solução fácil à reemergência dos radicalismos, mas apenas respostas genéricas. “Enquanto a gente não deixar de lado a crença de que a humanidade se limita às fronteiras do nosso próprio grupo humano, os problemas vão continuar. É preciso que as sociedades se tornem mais empáticas com membros de outras sociedades. É preciso que as pessoas acreditem em direitos humanos verdadeiramente universais e não em ‘direitos humanos universais relativos’.”
Ironicamente ou não, esse é um processo civilizatório que somente ocorre com a organização dos indivíduos e com a emergência dos mesmos grupos encarados como ameaçadores pelo statu quo conservador. “O movimento negro, por exemplo, é fundamental para o estabelecimento de uma agenda política.”
O pesquisador também considera essencial que a sociedade repense a estrutura produtiva atual, que, segundo ele, apenas reforça a separação. “Quando as pessoas atingem certo nível de bem-estar, elas infelizmente se tornam mais egoístas, e isso ganha enorme importância em um mundo tão desigual.”
Ele acredita, como muitos teóricos das Ciências Sociais, na possibilidade de sucessão de ondas históricas conservadoras e progressistas, e também no valor que o momento atual pode ter para despertar nas pessoas a percepção sobre a necessidade de mudanças. Mas não é ingênuo: “se esta onda conservadora se prolongar, teremos sérios problemas”.
(*) - Caso, por exemplo, de “Sociabilidade, competência, moralidade e nacionalismo ideal como dimensões auto-estereotípicas do autoconceito nacional em seis países da América Latina”, publicado na revista Avances en Psicología Latinoamericana (Colômbia, 2016), disponível em http://migre.me/ufpQM.
Para saber mais:
Ernest Becker, “A Negação da Morte”, 3ª edição, São Paulo: Record, 301 p., 2007.
Jeff Greenberg, Tom Pyszczynski e Sheldon Solomon, “The Causes and Consequences of a Need for Self-Esteem: A Terror Management Theory”, artigo de 1986 que lançou a Teoria do Gerenciamento do Terror, disponível em http://migre.me/ufqeA.
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